TURMA DE 72 - Memórias de BQ


O Templo de Cultura

Não há aquele que tenha frequentado os bancos da EPCAr no
inicio dos anos setenta e não se recorde da figura austera e
impoluta do brigadeiro Oswaldo Terra de Farias.

Alto, forte, porte ereto, honesto e casto, misterioso, um
verdadeiro Jean Valjean de fardas. Cultura admirável,
sociólogo de formação, o comandante ocupava um lugar
especial, quase mitológico, no imaginário dos seus
subordinados.

Pouco dado a aparições cotidianas, o brigadeiro Terra fazia
o estilo reservado, distante, como se não participasse de
fato do dia a dia da escola. Era um militar que se fazia
respeitar pelo próprio carisma, além do temor natural que o
seu grau hierárquico, por si, já impunha.

Preocupado com as questões sociais do seu tempo, o
brigadeiro preferia se comunicar através de palestras para
seus comandados. Com exacerbado dom de oratória, com sua voz
pausada, grave, suas preleções eram ouvidas com respeito
silencioso da platéia, dominada pelas palavras superiores
daquele orador enigmático, profundo.

Era no púlpito do cine-teatro da escola que se fazia sentir
o brilho de sua cultura sólida, de seu temperamento prudente
e sensato. O brigadeiro Terra cultuava a moral, em seu
sentido filosófico mais profundo. Defendia seus pontos de
vista com clareza, argumentando com sabedoria, auxiliado por
sua tremenda voz de baixo profundo, que atingia o espectador
mais desatento, invariavelmente.

Éramos jovens, inquietos, mas lembro-me que não ficávamos
contrariados quando convocados para uma das conferencias do
brigadeiro, no cinema da escola. Apesar das palavras
difíceis, havia um certo atrativo nas palavras daquele
comandante austero, paternal e melancólico.

Aliás, o cinema, em si, era a menina dos olhos do
brigadeiro. Poucos terão esquecido suas lendárias palavras,
quando, no inicio de sua gestão, em uma de suas primeiras
palestras, brindou o nosso cine-teatro recém inaugurado com
a seguinte profecia:

-Aqui!... (pausa prolongada) - neste templo de
cultura!...(pausa) - passarão!... baléééés!... orquestras
sinfônicas!... companhias teatrais!...

E não se equivocava o comandante Terra em sua visão
profética, otimista. Vimos, com o passar dos anos,
iluminar-se o cinema com a arte de atores consagrados,
belíssimas apresentações músicais, filmes inesquecíveis.
Enfim, enriquecemo-nos todos naquele prédio amplo,
construído com esmero, com suas poltronas vermelhas e sua
acústica irrepreensível. O brigadeiro sabia o que estava
dizendo.

Por isso mesmo jamais pude perdoar a ousadia de um certo
imitador de fim de semana, um tal de Henrique não sei das
quantas, um rapaz de má índole e péssimos antecedentes.
Deu-se a heresia em certa tarde monótona, quando
dormitávamos sob cobertores, transidos de frio, ao som
ritmado dos pingos de uma chuva incômoda, que prendia a
todos na escola em pleno sábado. Eis que ouvimos de repente
a voz do brigadeiro a discursar no banheiro, tonitroando
pelo alojamento a fora, grave, pausada, inesperada:

- Aqui!... Neste templo de cultura!... Passarão!...
Baléééésss!... Orquestras Sinfônicas!.... Escolas de
Samba!... Sacanaaaagem!...

Ramalho


  • Retorna
  • inicial