TURMA DE 72 - Memórias de BQ


Fim de Tarde

Bassi da uma geral nas roupas enquanto me fala do emprego
que tinha em São Paulo; eu engraxo os borzeguins, faço hora
por ali, estou pensando no jantar daqui a pouco. O
alojamento agora é um turbilhão de vida, gente que entra e
sai, gente com as portas dos armários abertas, conversando e
rindo, muitos que transitam de toalha e escova de dentes
entre os beliches, alguns já prontos para o rancho, mas que
se detém a conversar, a fazer trocas de bugingangas, a
combinar planos de viagens no fim de semana. Ao longe ouço
gracejos do Douglas, concentrado em aplicar o melhor de si
no meritório ofício de amolar Maraschim. Voz que se confunde
com a cantoria romântica e exagerada do arataca Gerson, mais
próximo, deitado de costas, ainda de calção e camiseta,
imundos, ele mesmo todo suado. Gerson viaja na mesma balada
arrastada de Roberto Carlos de todas as tardes. Gâmbaro esta
do nosso lado, parado diante das gavetas escancaradas,
resmunga sobre uns buracos que vêm lhe aparecendo nas
roupas, desconfia que está abrigando um ninho de ratos no
guarda-roupas. Começa a retirar as gavetas, pragueja em sua
linguagem peculiar. Ali perto alguém dispara os acordes
distorcidos de um berimbau, a orientar o ritmo das evoluções
do mestre Augusto. É hora da sessão diária de capoeira do
"macete" e ele faz tudo com seriedade e competência. Alguns
curiosos se amontoam para vê-lo e a seus pupilos, em suas
evoluções acrobáticas. Alguns cantam e batem palma,
moderadamente. Eis que Bassi fica subitamente tenso,
interrompendo o nó da gravata pelo meio, diante do espelho:

- Puta, meu, lá vem o Brincas com os pingo de leite! Ôrra, é
um saco, viu?

Volto-me para olhar. Brincas vem se aproximando, o rotundo
Brincas, uma bola esbranquiçada e imensa que aderna, a
toalha sobre a volumosa barriga, uma caixa de doces de leite
sob um dos braços. Eis que completa a rolagem e estaciona
bem em frente a nós, meditando sobre alguma coisa. Tem um
pingo de leite na boca e a caixa ainda quase cheia. Ele
agora tem uma das mãos na cintura e a bunda voltada para o
norte, o outro braço a leste, apoiado no armário. Pensa e
mastiga, irritando a todos num raio de quinze metros:

- nhec. nhec. chlep. chlep.chlep. chlep. chlep.

Bassi esta com pressa de sair dali. Realmente, é um
espetáculo grotesco aquela ruminância diária do gelatina
Brincas.

- Vocês sabiam da maior? chlep, nhec, nhec.

Brincas engrena um bizu e pôe mais um doce na boca.

- Lá vai, informação quente. Fiquei sabendo hoje. chlep,
nhec, nhec, chlep, chep, chep. - o terceiro ano da escola
vai ser no Rio de Janeiro. nhec, nhec, nhec, chep. chep.

- Qual é, Brincas, de novo com esse papo? - Valentim, de
toalha e sabonete, sorrindo, de passagem.

- É sério. O Valeiko me contou isso agora. Nhep, nhep,
chlep, nhec, nhec.

- Bom, vocês me desculpem mas vou descendo pro rancho.

Bassi pedindo arrego, vai saindo de fininho. Ajeita a
gravata pelo caminho, detém-se um pouco diante do espelho
coletivo, desaparece por trás da porta, discreto como
sempre.

-Ramalho, você já reparou uma coisa? nhec., nhec. nhec.
chlep, nhec. Já reparou que todo dia a essa hora, nhec,
nhec, chep. é sou eu chegar e o Bassi se manda? Porra, que
foi que eu fiz? chep, nhec.nhec.nhec.

Nem tento responder, mesmo porque um forte alarido se faz
ouvir agora da ala norte, um vulto de feições indefinidas
correndo em direção a porta, o vozerio atrás, cada vez mais
entusiasmado e ensurdecedor:

- Segura o Barroso! Segura o Barroso!

Um afobado e veloz Barroso consegue escapar da turba e
desaparece pela porta central, rumo a sua obsessão diária e
religiosa: estar na primeira fila do rancho. Calculo
mentalmente as horas pela saída do Barroso, não preciso
olhar o relógio. Ainda falta uma meia hora para abrir o
rancho. Brincas abandona finalmente sua caixa de pingos de
leite e começa a procurar as peças do sexto interno,
desentalando uma imensa cueca samba canção da tumultuada
gaveta.

Estou pronto, limpo e penteado, resolvo vadiar um pouco pelo
alojamento, bater papo, apreciar um pouco a dança. No Ap ao
lado começa uma pequena altercação, ouço as vozes do
Ferrarezi, do Hensel e do Tinelli. Discutem sobre carros, o
tema é reprisado pela enésima vez, Opala versus Corcel,
Ferrarezi sobressaindo-se com seu timbre possante, alinhando
opiniões técnicas. Detenho-me agora junto ao pessoal do
Augusto Macete, a aula está animada. Augusto agora tem o
comando do berimbau, Rivera e Zerinho ensaiam rasteiras e
saltos mortais. A turma acompanha com palmas, entre eles
está o aluno de dia ao CA, sorrindo, embora de braços
cruzados, um alemão de reduzida estatura e semblante sereno,
que aprecia calmamente o espetáculo. Claudino vem saindo do
banheiro, cruza a arena de toalha e tudo, treme um pouco de
frio, corre para o armário. Na passagem vou com a mão em
direção à bunda dele, que se esquiva e reage com a
delicadeza de sempre:

- Porra!!! Não tem mãe não, viadinho? Ramalho, pôrra, me
espera aí que vou descer para o rancho com você.

- Jacaré!!! - o berro vem da outra extremidade do
alojamento.

- É a mãe. Ramalho espera aí, seu babaca, vou catar uma
roupa passada aqui.

Sinto vontade de fumar enquanto espero o jacaré se vestir,
estou preocupado. Lembrei-me do raio da audiência amanha com
o Pedal. Merda. Vou arriscar um vôo por instrumentos na
sexta feira, com certeza, porque vem LS3 no mínimo. Droga.
Aqui não se pode nem mexer para o lado errado.

Um novo berreiro interrompe meu devaneio, desta vez mais
próximo, vindo das bandas do meu próprio armário, a voz do
Gambá por cima de tudo, com seu sotaque característico:

- Aira, que lá vai rato!

O tumulto se forma imediatamente. Logo tem início uma
perseguição movida a vassoura, alguns procurando
disfarçadamente a segurança dos beliches, com medo do
camundongo, outros se armando como podem, indo juntar-se aos
que agora tentam cercar de qualquer jeito o assustado
montículo negro, que dispara veloz por entre os pés das
camas, desesperado.

Dois beliches virados, um Abud irado porque pisaram em sua
toalha, uma confusão infernal. Mas o bicho está cercado
entre dois armários que se fecham em ângulo, uma armadilha
improvisada no desespero. O camundongo agora corre em
círculos no pequeno espaço que lhe resta, atordoado,
procurando inutilmente uma trilha de fuga. Gambá está à
frente da multidão que delira, cômico em sua cueca mal
ajambrada, armado de um imenso rodo, rindo e dizendo
pilhérias. A galera faz festa e vem chegando mais gente.

- Lincha! lincha!

- Porrada!

- Alojamento, sentido!

Oficial a estibordo. Silencio súbito, imobilidade. O recém
promovido Tenente Ávila está no alojamento agora, vem
caminhando por entre as camas, dirige-se diretamente aos
caçadores, que agora se amontoam atabalhoadamente em torno
dos armários que cercam o camundongo. A percepção do apuro
me vem de imediato, sou obrigado a meditar sobre certas
incongruências do RDAer. O fato é que o rato esta livre,
embora não saiba, beneficiado pela disciplina militar, que
obriga seus algozes a permanecer imóveis naquele momento.
Vejo o bichinho perfeitamente daqui, do outro lado, dois
olhinhos assustados que perscrutam o ambiente, ainda imóvel
junto a parede. Enxergo-o por entre as pernas dos
perseguidores mais afoitos, que agora estão nitidamente
apreensivos, afastando-se prudente e disfarçadamente do
animal. Jacaré sussurra ao pé do meu ouvido:

- Ramalho, o rato vai escapar.

O tenente vem se aproximando, tem o semblante enrugado,
tenta entender o que se passa. Para bem em frente aos
armários desalinhados, olha em todas as direções,
desconfiado. Balança a cabeça em direção ao Gambá, que está
um tanto pálido, e que aperta inconscientemente o rodo na
mão direita.

- Que bagunça é essa? Pra que esse rodo?

- Uai, seu tenente, o cas...

- Silêncio!

A tensão contagia o ambiente, sorrisos preocupados são
trocados de um lado a outro, a expectativa é grande. O
tenente agora localizou a origem da balbúrdia, está
afastando os que se mantém próximos à saída da armadilha,
vai olhar o que todos escondem ali. Enfia-se por entre três
ou quatro, olha, recua subitamente, o corpo enrijecido,
tenso.

- Um rato...

Nesse exato momento o bicho dispara lá de dentro,
obrigando-o a executar uma improvisada acrobacia, quase
perdendo o equilíbrio. O camundongo passa por entre suas
pernas e vai direto para o centro do círculo onde pouco
antes se dançava a capoeira. Fareja e olha em todas as
direções. Logo abre carreira novamente, provocando um
desesperado e silencioso debandar de pernas que sobem nas
camas, nos cinco ou seis metros que percorre até ganhar a
porta e desaparecer, são e salvo.

- Alojamento, à vontade.

Uma gargalhada estrondosa sacode o ambiente. O tenente ri,
humildemente, balança a cabeça. Gambá não perde a
oportunidade:

- Uai, tenente, bem que nos quis avisar.

- Cale a boca. Arrume essa bagunça.

E vai se afastando, agora esfrega um lenço na testa, ainda
ri enquanto caminha.

Ramalho


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