TURMA DE 72 -Memórias de BQ


Dia de Sorvete

O sol brilha. O calor está forte e a fome é voraz. Não posso
mesmo dar muita atençao ao aviso que se espalha dos alto
falantes nas proximidades. Recebo vagamente a mensagem
transmitida pela suave voz feminina: alguma coisa ligada a
reunião no cinema, CEMAL, etc. Não tenho nada a ver com
aquilo, ainda falta um ano para chegar minha vez. Difícil
mesmo está sendo suportar o calor e a morosidade da fila.

É dia de sorvete no rancho, dia de tumulto, dia de
vigilância severa do oficial de dia por causa dos espertos,
para que não excedam sua cota.

Dia em que a fila se detém toda vez que o auxiliar ao aluno
de dia fica sem nada para distribuir lá na frente.

Ninguem arreda pé do lugar até que venham da cozinha as
novas caixas e a distribuição recomece.

Estou sem ânimo. Um dente começa a querer incomodar. A
galera aqui de fora resolve provocar Fabiano, o
"Isabelinha". Este se defende mal, como sempre. Ou o faz sem
lógica, excitando o moral da tropa. Cada vez que abre a boca
é saudado com uma monumental gritaria, à guisa de sirene.
Agora mesmo ele tenta dizer qualquer coisa, mas é impedido
pela massa.

- Pessoal, dá um tempo! Espera um pouco! Deixe eu falar um
negócio.

- Quem achar um molinete me avise! Aquilo é caro pra
caramba! (sua voz é como um sibilo de chaleira, irritante,
aguda).

A reação é imediata:

- Aaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!!!!! A coisa
está formada, não tem jeito. Gerou. Fabiano mantém o sorriso
cretino de sempre no rosto, não consegue ficar sério,
provoca involuntàriamente os distúrbios, é o seu carma
particular.

Logo desiste de falar. Começa a praticar seu esporte
predileto: amolar quem está quieto. Tem uma liga de borracha
entre os dedos, aponta para um e para outro. Somos uns vinte
e poucos ainda do lado de fora, o mesmo acontece nas demais
portas. O esquadrão do primeiro ano ainda intacto lá em
cima, no pátio. O aluno de dia está atento em seu posto.
Comanda com firmeza o deslocamento das esquadrilhas, hoje
bastante lento, complicado. Ele passa um lenço no rosto,
olha um tanto desanimado para os grupos que ainda se
amontoam nas diversas entradas. O Sol brilha forte, o calor
é insuportável. Fabiano agora se bate com Benvegnu, a quem
dirige gracejos confusos, com seu inconfundível registro de
canário desafinado:

- Dez esticadas, agora, onze, doze... não dá nem pra
contar...

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnn!

O guincho é a resposta natural da galera. Benvegnu nem se
preocupa em revidar, preferindo aderir ao coro da geral.
Alguns sacodem a cabeça, sorrindo, outros se esforçam para
tumultuar ainda mais. Maraschim tenta fazer ouvir uma de
suas criancices, Fabiano devolve:

-Melecaaaa!

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnn!

Agora tudo é motivo. A fila ameaça andar. Alarme falso. Para
novamente.

Fabiano fecha um olho. Arremessa a liga com pontaria
certeira na nuca do Kishi. O japonês leva um susto, passa a
mão no lugar do impacto, fica enfezado:

- Num gosto da brincadêra, pôra!

Kishi tem cara de poucos amigos e logo volta o rosto de novo
para a frente, irritado, fechado. Douglas vem em sua defesa,
bem intencionado como sempre:

- Pôra, japonê tá borabo, nô? Respeta japonês!

- Qui she foda... Alguém provoca lá de trás.

O sol instiga os ânimos, a fila enervante. Fabiano não se
contém: o semblante de coruja atrapalhada, a voz fina e
"acariocada", ainda ousa provocar:

- Arakiri Saionara!

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!

A sirene sai caprichada. Fabiano é o astro do espetáculo,
mesmo quando contracena com suas vítimas. Kishi lança-lhe
agora uma careta terrível, contrariada. Súbitamente o ruído
decresce de intensidade: um oficial se aproxima.

Tenente Mendes vem andando, com a magreza que lhe é
peculiar. Semblante preocupado, sério, tira o bibíco,
encaixa-o na dobra da calça, vai pedindo passagem em direção
à porta. Amâncio está a dois passos. Vira-se para vovô
Ricardo e declama em sua voz queixosa e arrastada:

- Vovô, tem macarrão no rancho...

- Prefere uma LS3 ou sair na porrada? Mendes já diante do
"duende", bom de ouvido, rápido na reação. Aponta para os
próprios bíceps magros e enfrenta Amâncio com um olhar
furioso.

Contenho o riso. Lá se foi meu mau humor do dia. Mas agora
todos estão calados. Amâncio ainda tenta sustentar, um par
de olhos humildes e envergonhados, finalmente baixa a
cabeça. Mendes enfia-se para dentro do rancho, vermelho,
zangado. Gargalhada geral. A fila começa a andar novamente.
Agora vamos entrando todos. Lá dentro avisto dois taifeiros
deslocando uma enorme panela.

O refeitório ferve de agitação. Alguém aqui perto provoca o
Isabel novamente e ele retruca alguma coisa. A sirene sai
renovada. Logo um eco monumental se faz ouvir de todas as
partes do rancho, em solidariedade. Ao ruído da sirene
junta-se outro, mais irritante, agora: todos batem com as
canecas de alumínio nos suportes do paneleiro. A fome e o
calor gerando inquietação. A coisa encrencou lá na frente
outra vez. Um dos alunos de dia se aproxima, troca alguma
idéia com o auxiliar. O taifeiro espera, com a caixa vazia.
A fila não anda mesmo. Ouço uma altercação vinda dos lados
da primeira entrada. Ávila caminha em direção ao vozerio.
Está de oficial de dia hoje. Parece que um veterano discute
com um dos sargentos de serviço, que comanda a distribuição
em uma das bocas. Vejo que o 71 está bastante irritado e não
cede aos argumentos do sargento. Ávila lhe diz qualquer
coisa e ele vai embora, contrariado.

Alguém pede atenção ao rancho, subitamente todos se calam. É
um aviso sobre o uniforme para o expediente da tarde. Logo o
alarido se refaz, o ruído dos talheres, a conversa, a
impaciência, a fome voraz. Ainda estamos parados, mas o
reabastecimento de sorvete está chegando. A expectativa
aumenta. Logo a fila começa a andar. Parece que estávamos há
séculos no mesmo lugar. Finalmente um pouco de movimento,
embora muito lento ainda. Por isso mal percebo a sombra
carrancuda que se detém diante de nós. Ávila tem o dom da
ubiquidade:

- Bate na cabeça.

Não compreendo imediatamente mas logo percebo que ele não
fala comigo em especial e, sim, com todos nós. Ninguém
entende muito bem. Ele aponta para as canecas, que se chocam
furiosamente nos paneleiros, provocando um tim tim tim
infernal. Logo somos mais de vinte a percurtir canecas de
alumínio nas próprias cabeças, ritmadamente, como um bando
de cretinos saídos de um hospício.

Difícil é descrever essas coisas em casa. Ninguém acredita.
Um dia vou montar um livro contando minha vida aqui.

A cena é tão desprovida de senso que uma idéia me vem à
mente, sem querer. Penso naquele sujeito do vozeirão,
convidando os adolescentes a ingressar na Força Aérea, tão
amistosa e cordial, pelo menos no anúncio da televisão:

- Jóovem!! Este é o seu caminho! Mas logo o importuno Ávila
se afasta para outras bandas, agora está implicando com os
aratacas do Ceará, conta os sorvetes que eles pegaram. O
bicharal já começa a aportar nas bocas, as coisas vão se
engrenando, a fila anda, minha vez está quase chegando. Logo
já estou pedindo licença em uma mesa qualquer, sento-me,
preparo-me para devorar a comida. Mas tenho que me deter em
seguida, repousar novamente os talheres, prestar atenção a
outro aviso que agora está sendo dado. O Aluno de dia espera
cessar de todo qualquer ruído, fala pausadamente:

- Atenção rancho! Atenção. O rapaz do segundo ano aqui
perdeu alguma coisa, quer dar um aviso (volta-se para
Fabiano: o próprio, que agora está ao seu lado, bandeja na
mão, nem achou lugar ainda).

- Fala você mesmo.

- Fabiano pousa a bandeja na mesa mais próxima, arranha a
garganta, tenta caprichar no timbre. Sai aquela coisa
esganiçada de sempre:

- Atenção, rancho! Quem achar um molinete prateado, favor
entregar na sociedade acadêmica!

-
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnn!

Agora é para valer. Os japoneses atacaram a base, o rancho
delira. Em meio a zoada total, percebo uma sombra se movendo
rapidamente vinda lá do fundo. Caminha para o centro, agita
os braços. A muito custo consegue se fazer notar, gritando a
todo pulmão:

- Atenção, silêncio!

Ávila novamente. O alarido vai decrescendo, emudece.

- Segundo esquadrão. Quem queria viajar no fim de semana
pode esquecer. Parece um bando de loucos. Licenciamento
local. A vontade.

Dia de sorvete, dia de isabelice também. Aos poucos volta um
leve zunido de conversa, ruídos de pratos, normalidade. Não
consigo ficar triste aqui, nem que me esforce para tal. Tem
sempre o acontecimento do dia. Penso que poucos vão se
importar com a punição. A bimestral começa na segunda, quase
ninguém ia viajar mesmo.

Agora peço licença a vocês, vou me concentrar na lúdica
atividade de devorar um bife a milanêsa. Percebo que também
estou começando a sentir vontade de tomar sorvete. Peguei um
de creme e chocolate. Está intacto ainda, no canto da
bandeja.

Ramalho


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