TURMA DE 72 - Memórias de BQ


Rancho Alegre e Acolhedor

- Como é o seu nome?

- Kátia. E o seu?

- Ramalho. Sou cadete da Aeronáutica...

- Ah... pensei que fosse aluno da escola...me dá um
cigarro?... você é o que mesmo? candeeiro? candete? me paga
uma cuba libre?

A sala era pintada em tons vermelhos e azuis, as paredes
descascadas, todo o ambiente iluminado por uma única e débil
lâmpada, algumas mesas dispersas, vários casais, duas ou
três mulheres dançando distraídamente, pitando cigarros
baratos, o olhar indefinido, triste.

Claudino tinha desaparecido por trás de umas cortinas com
uma loura esquisita, Paixão estava por perto, em animado
papo com uma paraguaia. As donzelas ali tinham tarimba, por
certo, pois na mesa deles já repousavam duas ou três
garrafas de cerveja vazia.

Minha acompanhante agora contava a historia da própria vida.
Tinha sido noiva, perdera a virgindade, o pai a expulsara de
casa aos quinze anos. Na falta de outra alternativa, tinha
vindo parar naquela vida. Eu escutava, comovido, embora com
a estranha sensação de já ter ouvido relato semelhante. No
entanto sentia-me paternal, seguro, superior. Afinal, tinha
dezessete anos, não era mais nenhum garoto. Aquela moca
precisava de um ombro amigo, experiente...

Mas nem por já possuir uma extraordinária experiência de
vida deixava de me impressionar com aquela triste história.
Sentia ímpetos de procurar aquele desalmado pai (padrasto,
segundo a moça) e dizer-lhe umas verdades na cara. Ah,
quando me dessem oportunidade iria transformar o mundo, era
só esperar para ver. Meu dia chegaria, e quando tal
sucedesse todos aqueles seres insensíveis, desalmados como
aquele cruel padrasto, iriam conhecer o peso do castigo por
seus atos desumanos!

A vitrola de fichas repetia pela terceira vez a canção de
Evaldo Braga, - "Sorria, meu bem. sorriiiiaaaaa!!! você hoje
choooora!, amanha sorrirá tambeeemmm!" cuja letra era
declamada de cor por alguma meninas da casa, enquanto
sacudiam o corpo voluptuosamente, exalando solidão.

Um princípio de tumulto sacudiu o ambiente, palavras ásperas
foram ouvidas na direção da mesa mais ao fundo, o conflito
logo contornado por uma senhora muito digna, de cabelos
avermelhados, gorda, que irrompeu de trás das imundas
cortinas assim que começou a altercação. Ela agora
conversava com um sujeito mal humorado, que resmungava
coisas desconexas, sobre dinheiro, carteira, qualquer coisa
assim. Sua acompanhante agora o execrava com palavras
insultosas, explicando-se um tanto chorosa para a Tia, que
parecia ter bastante experiência naquele tipo de distúrbio.
Logo em seguida o rapaz se retirava, meio cambaleante, as
mocas ensaiando uma vaia, que afinal não aconteceu.

Fazia frio em Barbacena, o domingo despontava no céu
estrelado lá fora. Eu agora dançava com a moça, que tinha a
cabeça repousada sobre o meu ombro e parecia estar com sono.
Paixão ainda conversava com a namorada. Claudino estava de
volta, tinha ido ocupar a mesa deixada pelo brigão. Ele
parecia feliz, à vontade. Sua acompanhante fumava
distraidamente um comprido cigarro "Charm" e de vez em
quando soltava uma gargalhada curta, rouca, fitando
divertida o meu amigo, aninhando-se em seus braços. Nunca
tinha visto Claudino tão à vontade com uma mulher.

Enfim, a ternura venceu o cansaço. A moça terminava por se
render as minhas palavras confortadoras, carinhosas. Era
visível que estava morta de cansaço, mas que parecia
disposta a tudo para ter um pouco de amor comigo. Foi entre
dois bocejos que fez o convite, propositadamente
indiferente, como se temesse parecer fácil demais para mim.

- Vamos?

Deixei-me levar pela mão delicada, que parecia conhecer de
cor o caminho da alcova, e que em seguida retirava
furtivamente uma chave de uma dobra da blusa. Senti-me
levemente culpado por tê-la seduzido, pois percebi que a
pobre mal podia esperar, desabotoando-me a roupa
apressadamente enquanto fazia o mesmo com as próprias
vestes. Em segundos rolávamos nus pela cama. A moca gemia,
louca de paixão, coitada, parecia fora de si. Percebi que
havia confiado em minhas palavras, e que agora experimentava
pela primeira vez a sublime ventura do amor verdadeiro.

Mais tarde, enquanto me abotoava a camisa, perguntou-me se
já tinha pago à dona da pensão. Disse-lhe que sim, ela
concordou mecanicamente, o pensamento longe. Era cruel ter
que tocar naquele assunto vil, material, mas assim era a
vida a que havia sido condenada aquela pobre moça. Senti-me
grato por ter deixado o dinheiro antes com a "madrinha", a
mesma mulher de cabelos avermelhados e olhar esperto - a
palma da mão estendida quando passamos por ela rumo ao
quarto, meia hora antes - Não precisava agora falar em
dinheiro com a pequena, o que poderia arranhar o clima de
ternura que despontava entre nós.

Voltei à sala. A moça não veio. Creio que chorava, quem
sabe, a cabea no travesseiro, as lágrimas molhando o lençol
amarelado, de bizarras estampas - por saber que jamais
poderia se ver livre daquela triste sina. Refleti naquele
momento que minha imagem ficaria para sempre guardada em
suas retinas, como um pequeno oásis de amor naquela sua
rotina cruel.

Claudino "Jacaré" pagava sua despesa, Paixão estava de volta
também, sua companheira dizia-lhe qualquer coisa sorrindo.
Logo saíamos os três para a madrugada fria e nevoenta, todos
calados, pensativos, mortos de sono.

A imagem da moça acompanhou-me ate à escola, e creio mesmo
que sonhei com ela naquela noite. Alguns anos depois
acordaria para a vida, que me obrigaria a crescer e aprender
coisas muito duras. Entre elas a verdade sobre aquelas
criaturas de vida sem sentido, carentes de alegria genuína.
Hoje sei que não havia padastro algum, nem noivo ou nada
parecido. E que ela contaria a mesma historia noite após
noite, até o fim do abismo. E que adolescentes ingênuos como
eu aprendem a amar com moças iguais a ela desde o princípio
dos tempos. Agora conheço os verdadeiros culpados por
aqueles destinos, os mesmos que sobrevivem da fome e da
ignorância, e sei que nada posso fazer para castigá-los. São
verdugos sutís, abstratos e impessoais, mas verdadeiros, que
andam à espreita em cada esquina e se alimentam de egoísmo e
desamor.

Ramalho


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