TURMA DE 72 - Memórias de BQ


Dias de Pânico, Pinga e Violão

Barbacena, enfim. Uma brisa leve agitava as folhas da banca
de jornais quando paramos. Desci do ônibus enquanto tentava
vencer a dormência das pernas, os olhos ainda grudados de
sono. Conferi os bolsos, passei a mão apressadamente pela
camisa amarrotada, a calça ídem, joguei a mochila nas
costas, acendi um cigarro. Claudino fez o mesmo, começamos a
caminhada Rua Quinze abaixo. Não falávamos muito, alias não
falávamos nada, apenas caminhávamos. Pensava na prova dali a
três dias. Claudino pensava no café da manha. Percebi quando
o vi jogar o cigarro fora depois de duas ou três tragadas
-hábito incomum no Jacaré. Fiz o mesmo - nada mais sem graça
que fumar de estômago vazio. Cuspi uma saliva amarga, senti
doer-me a garganta. Mas logo estaríamos na escola, bem a
tempo do rancho das sete horas. Claudino caminhava
pensativo, mas não parecia preocupado. Preocupado estava eu,
não muito, mas estava, e quem não ficaria, as vésperas de
uma prova de segunda época? Claudino resolvera me acompanhar
na viagem - alegara tédio das ferias, e agora desciamos a
ladeira tão familiar, um por dever, outro por simples
passeio, recebendo no rosto um resto de neblina matinal.
Estávamos em fevereiro, em pleno verão, mas as manhas de
Barbacena eram frias, teimosamente frias.

Não tinha muito o que temer, refleti enquanto caminhava. As
notas absolutas, e não as medias, eis o que seria registrado
nos exames de segunda época. Minha promoção ao terceiro ano
dependia apenas da aprovação naquela prova de desenho
técnico. Matéria passada e repassada nas ferias. O que me
havia feito sucumbir chamava-se grau relativo, o confuso
sistema de medias inventado pelo Coronel Brasil. Aquilo
jamais poderia ter sido aplicado nas avaliações de desenho.
Isto porque ninguém tirava menos de sete nas ingênuas provas
do professor Baungarth. Mas o diabo e que eu e mais quatro
infelizes tirávamos justamente sete, ou pouco mais do que
isso, e o resto da turma conseguia oito, nove, dez. E assim
nossas notas eram sistematicamente rebaixadas para miseros
quatro, três e meio. Sentia-me um pouco ansioso. Havia uma
leve apreensão, naturalmente, mas não passava disso.
Desciamos agora rumo a escola, o portão da guarda avistado de
longe. Era segunda feira, e havia algum movimento na entrada
. Claudino diminuiu o passo de repente, tocou meu braço,
apontou para o botequim a direita.

- Ramalho, e melhor não piruar.- e mostrou a própria bolsa
de viagem.

Entendi que ele preferia vestir o uniforme antes de entrar,
concordei. Saudamos o dono do bar, pedimos licença,
dirigimo-nos ao banheiro. Dali a pouco deixavamos aquele
ambiente infecto transformados em dois jovens pré-cadetes,
ambos de quinto A, ligeiramente amassados, mas razoavelmente
apresentáveis. A expressão do homem alargou-se subitamente
quando nos viu fardados; cumprimentou-nos sorrindo enquanto
esfregava o balcão com um pano imundo. Agradecemos,
percorremos o resto de rua que faltava para o portão da
guarda.

Batemos a continência de praxe, o praça retribuiu com um
golpe firme de bute. O sargento Ezequiel chegava naquele
momento acompanhado do taifeiro-barbeiro, conversavam.
Passaram por nos, sorriram, logo tomando a dianteira,
pareciam ter pressa. O tenente Batista passou em seguida,
olhou-nos com indiferença de dentro do Corcel amarelo,
batemos continência, ele respondeu com um aceno de cabeça e
acelerou, tomando a direção do pátio da bandeira. Alguns
recrutas marchavam por ali, ao comando de um sargento que os
advertia brandamente, esquerda, direita, esquerda, direita,
mas de resto tudo parecia repousar, a escola mergulhada em
um inquietante silencio, o pátio vazio, janelas fechadas,
melancolia.

O alojamento despertava no momento em que entramos. Percebi
que apenas o primeiro setor havia sido liberado para
repouso, as camas desarrumadas, gente dormindo, outros que
desciam para o rancho, conversando. Calculei que seriamos
uns quarenta a nos hospedar naqueles dias de segunda época.
Aquilo era um arremedo de rotina, em contraste com a
exuberante agitação dos dias normais de aula. Abri o
armário, tudo em ordem, os uniformes e roupas de camas no
mesmo lugar onde os deixara dois meses antes. Claudino já
vestia o sexto interno, fiz o mesmo, limpei o empoeirado
borzeguim, esfreguei displicentemente uma flanela velha no
cinto. Logo desciamos para o rancho. Apenas uma das bocas
funcionava, um reduzido numero de mesas a nossa esquerda,
raras pessoas Lá dentro. Tomamos café, fumamos um cigarro,
este sim, um cigarro decente, voltamos para o alojamento.
Era segunda feira, que diabo iria fazer para matar o tempo?
Havia um carteado rolando em uma das camas. Alguém estudava,
indiferente a conversa em sua volta, um outro dedilhava um
violão. Resolvi continuar a leitura de um romance policial
que trouxera na mochila. Não conseguiria mais estudar. Já
não suportava mais desenhar arcos góticos, que alias iam
piorando de aparência a medida em que treinava. Que Deus me
ajudasse na hora da prova. Deitei-me, ajeitei o travesseiro,
pus-me a ler. Claudino observava o jogo, em breve estaria
entrosado na roda.

O sono agora vinha chegando, resultado da noite dormida em
viagem, mas resolvi resistir. Pensei em passear um pouco.
Não haveria muita gente para amolar agora, com exceção do
oficial de dia e de um ou outro lanceiro retardatário de 71.
Mas os veteranos estavam indo embora e logo não restaria
nenhum deles por ali, nunca mais. Dali a poucos dias, menos
de um mês, todos- os que agora estavam ali em minha volta, -
torci por eles sinceramente - e os demais, os felizardos que
apenas aguardavam em casa o fim das férias- voltariam como
terceiro anistas. O poder tão aguardado, o orgulho de mandar
na escola - uma realidade cada vez mais próxima. Resolvi
antecipar o gosto do reinado que nos aguardava. Iria dar uma
volta , contemplar os domínios que em breve nos seriam
transmitidos por herança, ensaiar uma postura mais... sei
Lá, veteranística... Tinha que me habituar e um passeio não
me faria mal. Abandonei o livro sob a cama, calcei de novo
os borzeguins, vesti a camisa que repousava no espaldar .
Passei pela roda de sueca - Jacaré já mergulhado no jogo, um
cigarro fumegando entre os lábios, a expressão concentrada
de um profissional, resolvi deixa-lo em paz com suas cartas,
dirigi-me a porta.

- Ramalho!- alguém gritou. Voltei-me. Ibero me acenava de
longe com alguma coisa nas mãos. Caminhei de volta, ele
estava diante de um espelhinho na frente do armário. Passava
algo nos cabelos.

- Brilhantina?

- Vai emplastrando ai. Voce vai precisar.

- Que significa isso?

- Da uma olhada em volta - Ibero fez um gesto largo com os
braços.

A primeira vista não percebi nada. Mas logo alguma coisa me
saltou aos olhos, pondo-me de sobreaviso. Os cabelos
cortados, um corte exagerado, ridículo. Vários dos nossos,
como se acabassem de sentar praça em um quartel do exercito.
Por que a preocupação com a aparência, a vibração repentina?
Por que cortar os cabelos apenas para fazer uma prova, se
logo estaríamos viajando de volta para casa? Ibero não
esperou a pergunta.

- Fernandes na área. Esta exigindo corte de cabelo, em
plenas ferias, e mole?

Ele disse aquilo e em seguida me fez rir ao enfiar o bibico
com toda a forca na cabeça - o que de resto chamava muito
mais a atenção do que o comprimento dos cabelos - e então me
explicou o que se passava. Parece que havia um jogo de gato
e rato na escola por aqueles dias, e os ratos éramos nos.

- Negocio e o seguinte. Quem se apresenta espontaneamente na
barbearia ganha corte normal. Quem for pego pelo Cabeção
ganha uma escolta grátis ate o barbeiro e um corte escroto,
de reco mesmo. Passa brilhantina, disfarça com o bibico e
presta atenção por onde anda. De longe não da para perceber.
Mas se der de cara com ele, já era, não tem como escapar.

Nesse momento percebi movimento em volta de um armário no
lado oposto. Reunidos em volta de um espelho outros adeptos
do clube da brilhantina a se lambuzar alegremente, entre
risadas e pilhérias. Farah, Fontoura, Carlos Lopes, Schemes
e outros.

Resolvi desistir do passeio enquanto pensava melhor sobre o
assunto. Cortar o cabelo era coisa que não estava nos meus
planos, definitivamente, ainda mais a duas semanas do
carnaval. Agora já me arrependia daquela viagem precipitada.
Por que não deixara para vir na véspera? Teria três dias de
sobressaltos pela frente , se e que tinha alguma chance
contra o Fernandes. Voltei ao armário, troquei de roupa,
decidi dormir um pouco. Então uma idéia me acorreu,
deixando-me mais preocupado ainda. O que impediria o Cabeção
de entrar no alojamento? E foi nesse exato momento que ouvi
o temido "alojamento, sentido." Um suor frio percorreu-me o
corpo.

- A vontade. - Mendes, o oficial de dia, foi entrando, olhou
para todos os lados, voltou-se, saiu novamente.

Recuperei-me daquele primeiro susto, passei a mão na
cabeleira estufada, resolvi tomar alguma providencia.
Claudino me olhava de longe, veio chegando.

- Ramalho, já soube do Cabeção?

- Que merda.

- Porra, não to a fim de cortar cabelo.

- Nem eu.

Dali a pouco fazíamos a primeira expedição de
reconhecimento. Atravessamos o pátio do rancho, subimos as
escadas rumo ao pavilhão de salas de aula do 2º ano,
seguimos rumo ao interior do comando da escola. Um roteiro
suicida, mas nenhum dos dois sabia muito bem porque
tomávamos aquela direção. Logo percorriamos o corredor que
desembocava no pavilhão de salas do primeiro ano e que dava
saída para o pátio da bandeira. Nenhuma viva alma. Saímos
para o pátio deserto, o sol despontando por trás de nuvens
límpidas, tudo vazio e abandonado. Uma idéia me ocorreu de
repente, puxei meu amigo pelo braço, apontei para o cassino.

- Vamos Lá.

- Porra! Perdeu o juízo?

- Vamos jogar sinuca.

A este ultimo convite o Jacaré não podia resistir, ainda que
não estivesse entendendo minha linha de raciocínio. Logo
disputávamos uma desanimada partida. Claudino jogava muito
melhor do que eu. Minha deficiência naquele jogo sem lógica
era agravada agora por uma absoluta falta de concentração .
Eu estava de olho na sala da barbearia, onde dois bichos
eram atendidos no momento. Um outro 73 já saia da sala, a
expressão de desapontamento no semblante de menino;
Chamei-o.

- Foi premiado?

- Cabeção. Aquele filho da p...

- Ele esta na escola agora?

- Ele esta todos os dias na escola. Parece que esta fazendo
um curso de férias, uma merda dessas. Quando pode sai
caçando o pessoal. Cheguei na quarta-feira pra ficar uns
dias com minha namorada. Vou fazer minha prova agora a tarde
e pretendia ir embora amanha. Ai, já viu, Né? - e apontou o
monticulo de cabelo que lhe restava no alto da cabeça. Onde
o Fernandes arranjara inspiração para aquele corte ridículo?

- Bem, meus pêsames... - e bati no ombro do coitado a guisa
de solidariedade. O bicho foi saindo com seu andar gingado,
sacudindo com o bibico os fios de cabelo que se lhe grudavam
na camisa de tergal. Claudino vinha saindo do banheiro.

- Ramalho, não e melhor a gente se arrancar daqui?

- Ao contrario. Estamos no lugar mais seguro da escola.

Claudino arregalou os olhos confusos, mas não tive tempo
mesmo de explicar nada. Pelas vidraças podíamos agora
enxergar perfeitamente a figura do garboso Tenente
Intendente Fernandes, triunfante e sarcástico, escoltando
com um sorriso vitorioso três prisioneiros recém capturados.
Ibero era um deles. Vinham subindo agora, todos no passo
contrariado e arrastado dos revoltados. Fiz sinal com a
cabeça para o Jaquinha, apontando-lhe a barbearia. Ele
parecia entender cada vez menos, mas não resistiu. Logo
estávamos sentados, cada um refastelado em uma cadeira de
espera, o rosto enfiado em uma revista, como se
aguardassemos nossa vez. O grupo chegou em seguida.
Fernandes tinha uma caneta nas mãos e agora anotava
pacientemente os números dos coitados. Não se dirigiu a mim,
tampouco ao Claudino. Não me atrevi a levantar olhos da
revista, mesmo porque meus nervos não permitiriam qualquer
movimento naquele momento. Mas o caçador logo se retirava,
após guardar o papel no bolso.

Respirei fundo. Ibero me olhava espantado, meio desapontado
com a própria situação, mas curioso ao ver-me ali tão cedo.

- Já?

- Ainda não. - e fui saindo, acompanhado do Jacaré, que a
essa altura tinha um sorriso escancarado na enorme bocarra.
- depois explico - acenei para os demais, todos a nos olhar
com inveja, sem entender nada. Voltamos a partida
interrompida. Claudino ganhava de largo placar, e agora que
se divertia com a situação jogava melhor ainda.

A tarde fiz conhecer ao meu amigo alguns detalhes da tática
que pretendia usar. O sol agora era abrasador e o movimento
de pessoas que subiam e desciam a rua quinze era bastante
intenso. Tomávamos cerveja despreocupadamente enquanto
contemplavamos o ir e vir da rua, os carros, as mocas.
Éramos os únicos fregueses do Sovons aquela hora. O garçom
dormitava a um canto do balcão; Claudino fumava seu eterno
hollywood enquanto deixava o olhar se perder longe, em algum
ponto da rua. Subitamente esticou as pernas com
displiscência, jogou a ponta do cigarro aceso Lá fora,
tossiu.

- Ramalho...

- Diga.

- Aquele troço só pode dar certo uma vez.

- O golpe da fila de espera?

- O Cabeção pode ser chato mas não é otário. Se
voce pensa em ficar jogando sinuca e correr para a barbearia
toda vez que ele aparecer por Lá, não conte comigo.

- Já pensei nisso. Mas acho que ainda da pra usar uma vez
mais.

- Baaahhhh.... - Claudino riu com os dentes escancarados,
tomou um gole rápido, sacudiu a cabeça. - Neeem pensar!

- Tudo bem, estou brincando. O que pensei mesmo e em ficar
por ali quando a gente estiver na escola. Quando o Cabeção
aparecer a gente se esconde. Veja bem, do cassino pode se
ver quem vem chegando de longe. Alem do mais não ha mais
nada de interessante para se fazer na escola do que jogar
sinuca mesmo. Da próxima vez a gente sobe a escada e fica no
primeiro andar ate ele ir embora.

- Por falar nisso, por que não fez isso hoje em vez de
piruar aquela merda? Vamos que ele cismasse de anotar os
números da gente.

- Ah, isso foi uma coisa que li um dia desses. E preciso
chegar o mais perto possível do inimigo, sentir a presença
dele pelo menos uma vez... E assim se perde o medo. E quanto
menos medo, menor a chance de se cometer erros.

- Porra! E bem que nos ficamos pertinho do Cabeção. Tu Tá
falando igual aqueles filósofos baratos de filmes de
guerra.

- Deixe por minha conta. Alias, quero apostar se a gente sai
daqui de cabelo intacto ou não.

Meia hora mais tarde passeávamos a esmo pela cidade. Uma
banda de música ensaiava dobrados no Jardim dos Macacos.
Ficamos por ali um pouco apreciando os acordes, matando o
tempo. Alguns músicos pertenciam a banda da escola, mas o
maestro era desconhecido para nos. Pensei em procurar umas
meninas conhecidas para os lados do pontilhão, resolvi
deixar para a noite. Entramos em algumas lojas, Claudino
comprou um livro sobre disco voadores, findamos a tarde em
um salão de bilhar na Bias Fortes.

O céu límpido, a noite estrelada, a descontração do grupo,
aquilo fazia bem a alma . O rapaz do violão tinha a voz
aveludada, tocava com maestria , transmitia serenidade, paz
de espirito. Uma garrafa de rum circulava agora, alguns
tentavam fazer coro com o cantor, o popular Jorge da Silva,
o artista da turma de 73. Alguém pediu o "Jangadeiro",
música de autoria dele, vencedora do Festival da Canção da
Epcar alguns meses antes; Da Silva não se fez de rogado,
todos silenciaram diante da linda melodia. Farah tinha os
olhos úmidos, um tanto de emoção e muito de álcool. Estava
mais do que embriagado e aplaudia exageradamente tudo que se
cantava. Giorno tinha a cabeça inclinada para um dos lados,
os olhos fixos nas estrelas, a expressão sonhadora e feliz
de sempre. Cantavamos para a noite de Barbacena, as luzes da
cidade, a lua cheia no céu. Pensei que alguém poderia ter
uma maquina fotográfica ali, bem que daria uma foto bonita.
A fachada de arquitetura antiga do comando, o minúsculo
pátio debilmente iluminado, o muro que margeava a linha de
trem, a cidade ao fundo. Os que vinham chegando da rua se
detinham atraídos pela música, acabavam ficando. Claudino
bebia e cantava, e ate acertava o tom de vez em quando. Era
um dos mais entusiasmados da roda e no auge da emoção propôs
um encerramento romântico para aquela noite de seresta:

- Que tal uma chegadinha na Dora?

Mas era segunda feira, dia de folga das mocas,- o detalhe
foi lembrado imediatamente - o passeio adiado para a noite
seguinte. E tome cana e violão. Conversava-se calmamente,
falava-se de namoradas, de provas, do carnaval. O assunto
mais comentado era a cacada aos cabeludos. Alguns riam,
relembravam passagens de suspense, um outro contava que
havia escapado por um triz. Pelo que se dizia o tenente
ainda não tinha piruado no alojamento, mas aparecia nos
lugares mais inesperados. Pelo que entendi ele devia andar
com os dias muito ocupados, do contrario pegaria facilmente
suas vitimas nas salas de aulas, nas horas de prova. Pelo
visto aproveitava os poucos minutos de folga para agir em
sua missão predatória.

- E quanto ao rancho?

- Sexta Feira ele estava de oficial de dia, quase ninguém
ficou para almoçar.

- E a noite?

- Ficou todo mundo com cagaço, mas ele não apareceu na
escola a noite.

- O filho da mãe esta e se divertindo com isso. Se quisesse
mesmo obrigar todo mundo a cortar cabelo pegava a lista da
segunda época e convocava um por um pelo alto falante.

- Que tal armar uma pra cima do Cabeção?

Ideias surgiram de todos os lados entre gargalhadas e
palavrões. O fato e que ninguém estava levando muito a serio
aquela chatice . A perseguição estava servindo mesmo era
para quebrar a tensão daqueles dias.

Quando o grupo de desfez já passava das duas horas.
Deitei-me sentindo o corpo pesado de sono de duas noites.
Mas adormeci em paz com a vida, feliz e bêbado, e logo
sonhava.

Terca feira chuvosa em BQ. Alguém me deixara por caridade um
enorme pão com manteiga embrulhado ao lado da cama. A cabeça
latejava, um gosto amargo na boca. Uma ressaca leve, mas
incomoda de qualquer jeito. Levantei-me a custo, bebi um
litro de água, escovei os dentes, resolvi estudar um pouco.
Muitos dormitavam nas camas. Takano vinha entrando
cabisbaixo, tamborilando uma caneta na palma da mão, o
semblante tenso. De longe observei-o, os gestos pesados,
todo ele triste. Olhei o relógio, pela hora devia estar
voltando da prova de matemática. Pela primeira vez atinei
com a realidade do risco que corria , embora remoto, de
fracassar. Não saberia o que fazer se ficasse reprovado.
Alguns com certeza não conseguiriam passar mesmo. Tentei
afastar esses pensamentos. O japonês agora estava sentado no
chão, a porta do armário aberta, fazendo anotações em um
caderno e consultando um livro. Devia estar pendurado em
mais outra matéria, com certeza química ou física.
Lembrei-me naquele instante do pobre Augusto Macete. Por que
alguns conseguiam assimilar conhecimentos com facilidade e
outros enfrentavam tantas dificuldades? Nesse momento um
vozerio despertou a todos. Farah vinha entrando agora,
dançava uma dança cômica, juntando os pés no ar, jogando
caderno e caneta para o alto:

- Passei, passei!

Alguem levantou a cabeça do travesseiro e resmungou , mas
Farah não lhe deu atenção , persistindo em sua comemoração
ruidosa. Resolvi deixar o caderno de desenho para um lado,
não suportava mais aquela geometria chata, repetitiva. Farah
repetia a todos que tinha certeza de ter sido bem sucedido e
que agora sairia para comemorar. Resolvi acompanha-lo, não
tinha fome mesmo, a noite jantaria. Pelo caminho soubemos
que o Cabeção estava viajando.

O restaurante A Brasileira ficava na parte alta da Rua
Quinze, bem em frente ao chafariz do Jardim dos Macacos. A
chuva fina já não incomodava agora, apenas aplacava o calor
de verão. Quando chegamos Lá havia uma roda animada em torno
de uma mesa, varias garrafas de cervejas e copos amontoados.
Vovô Ricardo tinha os olhos vermelhos de álcool, Alencar
contava uma historia qualquer. Logo formamos uma espécie de
corredor polonês na calcada. As mocas passavam apressadas,
envergonhadas pelas pilhérias que ouviam, algumas fechavam a
cara, erguendo a cabeça indignadas. Tudo era motivo para
risos e piadas, as horas voavam. Pensei que quando voltasse
das ferias arranjaria uma namorada em Barbacena. Nunca tinha
visto tanta gente bonita numa mesma tarde.

Mais tarde alguém sugeriu uma expedição para roubar mangas e
laranjas de um sitio vizinho a escola. Detalhes acertados,
partimos rua Quinze abaixo, todos sem exceção bastante
alcoolizados. Pular o muro estava fora de cogitação em plena
luz do dia. Carlos Lopes seria o batedor do grupo, pois já
estava de cabelo cortado - era do grupo dos espontâneos. Uma
vez dentro da escola ele seguiria na frente e nos faria
sinal a cada etapa do percurso. Seriam quatro horas da
tarde, hora bastante perigosa pois o expediente estava sendo
encerrado as quatro e meia. Transposto o portão da guarda
decidimos seguir pelo pátio da bandeira. Carlos Lopes seguiu
adiante enquanto aguardávamos junto a capela. Logo ele
lançava um assovio agudíssimo para nos. Avançamos então, mas
o debilóide começou a agitar os braços em desespero, a turma
parou atabalhoadamente, alguém caiu sentado. Agora o batedor
corria em nossa direção fazendo gestos com os braços que
ninguém entendia.

- Cabeção, pô!

Fernandes estava parado em frente a enfermaria, conversava
com um praça. Escondemo-nos de qualquer jeito, observando a
cena de longe, todos agachados. O tenente balançava a
cabeça, parecia explicar qualquer coisa; depois o soldado
afastou-se um pouco, perfilou-se, bateu continência. O
tenente fez o mesmo, voltou-se e veio caminhando, justamente
em nossa direção.

Quando passou diante da capela fechada deteve-se e fez o
sinal da cruz, depois começou o que parecia uma oração,
movendo os lábios rapidamente.

- Quem falou que ele tinha viajado?- alguém sussurrou no
escuro.

- O de baixo e meu, pô.

- Palavrão aqui dentro não, olha o respeito.

- Da pra ver dai?

- Santo Antônio esta reclamando do cheiro de cachaça.

- Espere. Silencio ai.

- Já foi?

- Péra aí...terminou. Esta indo embora.

Caminho livre agora. Saímos da capela pela mesma porta
lateral pela qual haviamos entrado, encontrada aberta no
atropelo da fuga por um desses inexplicáveis milagres da
providencia. Disparamos pátio da bandeira acima rumo ao
ginásio.

Logo o pequeno bando se espalhava em meio a uma montoeira de
cascas e bagaços. Vovô Ricardo demonstrava perícia incomum
com suas pedradas. Alencar se equilibrava em um galho de
mangueira, Senra descascava as laranjas com um canivete
imundo. Claudino enchia os bolsos de qualquer jeito, Braga
preferiu embrulhar suas frutas na camisa. Voltamos quando
anoitecia.

Claudino insistia na idéia de uma incursao noturna a Dora.
Eu argumentava que tinhamos coisa melhor pra fazer. O
alojamento agora quase deserto transmitia um ar de desolação
insuportável. Ninguém conseguia ficar na escola a noite.
Consegui convence-lo a conhecer minhas amigas do pontilhão,
dali a pouco saiamos para a noite estrelada. As mocas
estavam na calcada quando chegamos. Sandra me reconheceu de
longe, apontou-me para as outras, sorriu. Claudino sussurrou
em meu ouvido:

- Ramalho, se tu me chamar de Jacaré na frente delas Tá
fodido comigo.

- Fique tranquilo.

Aproximamo-nos, fiz as apresentações de praxe.

- Este e o Claudino, esta e a Sandra.

- Prazer, Claudino. - Jaquinha estendeu a mão e sorriu meio
sem graça. Meu amigo definitivamente não estava em seu
elemento. Com certeza gostaria de estar em outro lugar
naquele momento, sentado em uma mesa de toalhas vermelhas,
uma música sentimental ao fundo, tomando cerveja. Mas logo
se descontraiu.

- E voce o Ramalho tão falado? - exclamou uma mocinha de
seus dezesseis anos, desinibida, simpática.

- Falei de sua música Angélica, Ramalho. Alias, deixe eu
apresentar - essa e a Cleide.

- Prazer, Cleide. Só não sabia que era famoso.

- Sandra me falou d'oce. Disse que fez sucesso no festival
da escola com uma música.

- Ah, e. Bondade dela. Voce mora por aqui também?

- Ela e de Tiradentes, Ramalho.

- Ah, estive Lá um dia desses. - menti. - bonita cidade.

- Quando for de novo aparece Lá em casa...

Alguém trouxe um café, espalhamo-nos pelo meio fio. Havia
mais duas mocas alem daquelas duas. Claudino entabulava
conversa agora com uma delas, esta parecendo mais velha que
as demais, um tanto gordinha, falante como ela só. Sandra me
interrogava a parte, carinhosa e romântica.

- Ramalho, ocê não apareceu mais... Parece que me
esqueceu...

- Nada, impressão sua.

- Pensei tanto n'oce esses dias... - ela falava olhando
diretamente em meus olhos, acariciando-me o rosto
delicadamente. Beijei-a de na boca, ela me abraçou. Pelo
canto dos olhos percebi Claudino em animada prosa com a
gorduchinha. As outras duas tinham saído a passeio pela
calcada da pontilhão, logo desaparecendo na esquina.

Olhei o relógio, onze horas, sentia sono, um pouco de dor de
cabeça. As meninas queriam se recolher também,
despedimo-nos; prometi a Sandra voltar no dia seguinte.
Beijei-a novamente. Cleide e a outra haviam voltado,
conversavam a parte no batente do portão. Claudino disse
qualquer coisa, sua companheira riu, ele veio chegando.

- Bem, vamos andando. Foi um prazer.

- Claudino, voce vem amanha também, Né? - a gordinha parecia
entusiasmada.

- Com certeza - respondeu meu amigo, sorrindo
desajeitadamente.

- Podem ficar tranquilas, amanha trago o Jacaré novamente.

- Jacaré??? Uai? Por que Jacaré?

- Jacaré?... repetiu a gorducha...um moco tão bonito...

- Ahh. Isso e brincadeira do pessoal. Esse cara aqui e um
gozador, não sei se voces sabem - Claudino falava agora
totalmente desconcertado, tentando sorrir, envergonhado.

- Ah, não, Ramalho. Ele e muito simpático. Maldade d'oces...
Pois olhe, Claudino, gostei muito d'oce...

- Ramalho, ocê não presta mesmo...tadinho do moco...

Despedimo-nos finalmente, as duas ficaram na calcada
acenando e sorrindo. Eu agora media os metros que faltavam
ate a primeira esquina, de onde perderíamos as meninas de
vista, e vice versa. Claudino tinha o semblante fechado e
assobiava, característica de quando estava contrariado. De
repente vi-o olhar para trás, fiz o mesmo, naquele exato
momento as mocas sumiram por trás da esquina. Não esperei
mais nada, disparei a correr. Claudino zuniu atras de mim
imediatamente, os braços abertos tentando me agarrar pelo
cós da calca, furioso da vida:

- Ramalho vou te arrancar o saco, seu safado.

Dia de chuva novamente. Desta vez chuva pesada, a cidade
envolta em uma capa cinzenta e úmida, um céu cor de chumbo,
triste e ameaçador. Ninguém arredou pé do alojamento naquela
manha. Poucos haviam viajado pois a maioria preferia
permanecer na escola ate obter o resultado oficial das
provas, marcado para a outra semana. Havia gente de São
Paulo, do Nordeste, de muitos lugares distantes, para quem
não restava outra alternativa se não esperar mais alguns
dias pelo resultado. O carteado rolava solto no alojamento,
alguns dormiam, outros liam e conversavam. Eu repetia pela
decima vez a sequência de acordes que Da Silva tentava me
ensinar. Giorno permanecia próximo a nos, embrulhado em seu
eterno cobertor, atento e sereno. Pensava comigo que jamais
aprenderia a tocar um violão decente, pois quando ouvia
aquele rapaz dedilhar seus acordes percebia a imensa
distancia técnica que nos separava. Admirava a facilidade
que tinha em compor, o cuidado na construção dos versos de
suas letras. Muitos achavam que ele estava no lugar errado,
que poderia facilmente conseguir um lugar no mundo
artístico.

A chuva persistiu ate o fim da tarde, mas enfim despontava
novamente o céu estrelado dos dias anteriores. Não
acompanhei a turma que se dirigia a cidade, preferindo o
recolhimento do alojamento e a companhia do livro policial
que ficara esquecido sob a cama. Pensava em dormir cedo, uma
vez que não me sentia disposto a praticar mais nada, minha
mente saturada de linhas e ângulos ha quase dois meses. Duas
horas depois fiquei assustado quando percebi que estava
completamente só no alojamento. Então enfiei-me na cama e
dormi a forca, vencendo a tentação de trocar de roupa e sair
a procura dos companheiros.

Quinta feira, enfim. Resolvi aderir ao clube da brilhantina
antes de sair para a prova. Rezei um pouco, dirigi-me a sala
de aula, os demais já aguardando em seus lugares. Baungarth
chegou logo em seguida, caminhou gravemente ate o quadro,
depositando sua pasta sobre a mesa. Olhou-nos seriamente, um
por um. Depois abriu-se em um sorriso inesperado:

- Então são voces os burros da turma... reprovados em
desenho...- e soltou sua risadinha característica. Caimos na
gargalhada, liberando o que havia de tensão reprimida.

Uma hora depois entreguei-lhe a prova. Ele sussurrou que
esperasse um pouco, examinou rapidamente os desenhos, fez
que sim com a cabeça, exclamou em voz baixa:

- Não se preocupe. Não vou deixar ninguém reprovado em
desenho. Acho que posso lhe dar uns sete e meio.

Avistei o Jacaré assim que deixei a sala, recostado no
alambrado do alojamento; percebi que me aguardava. Fiz-lhe
de longe o sinal positivo com o polegar, ele abriu um
sorriso enorme. Sentia-me aliviado por dentro, feliz como um
menino. Como gostaria de ter alguns centavos no bolso para
pagar uma rodada de cerveja. Claudino pareceu adivinhar meu
pensamento:

- Passou, seu boboca? Porra, estava torcendo pra voce ficar
reprovado. Vamos tomar uma?

- Não tenho um tost&aatilde;o no bolso, só o da passagem e olhe Lá.

- Nem eu, baahhhh. A gente bebe a passagem e pega uma
carona.

- E desde quando alguém vai dar carona pra voce, Jaquinha?

- Pensando bem tu tem razão. Nesse caso
tu pode tirar a calça e virar a bunda pra estrada.
Quando aparecer alguém pra comer seu rabo você
aproveita e pede pra levar a gente.

E com tais palavras ficou estabelecida a reserva de
verba para a saideira de BQ. Na viagem pensariamos depois,
com muita calma e bastante cachaça.

Mochilas nas mãos, esperei o funcionário do Departamento de
Ensino acabar de falar ao telefone. Claudino admirava
distraidamente um quadro de avisos ao lado do balcão. Logo o
rapaz se viu desembaraçado, dirigindo-se a mim polidamente:

- Pois não...

- Gostaria de confirmar por telefone na segunda feira o
resultado oficial da prova de desenho técnico. E possível?

- Acho que não tem problema. Voce esta passando para o
terceiro ano agora, não? No dia voce me da o numero e o
nome, eu olho a nota.

Agradeci, saimos pelo corredor de tábuas corridas, os pés
martelando com um ruido surdo o piso antigo, os passos
ecoando pelas paredes brancas imensas. Claudino havia se
lembrado no ultimo momento de voltar ao alojamento pois
queria se despedir do Carlos Lopes. Enfiamo-nos por um
segundo corredor do labirinto que se tracava em torno das
salas do comando. Claudino deu uma meia parada para acender
um cigarro. Percebi que os meus haviam acabado, fiz menção
de pedir-lhe um, mas não tive tempo de abrir a boca. O
Tenente Fernandes acabara de surgir diante de nos,
detendo-se imediatamente ao nos avistar e agora estava ali,
braços cruzados e olhar inquisidor, balançando a cabeça:

- Vão viajar?

O momento que se seguiu a violência do susto foi de reação
nervosa, irracional. Voltei-me subitamente, puxando pelo
braço o meu apavorado amigo. Não pensava em mais nada, a não
ser correr, correr como jamais havia feito na vida, os
passos pesados do caçador atras de nos, as mochilas
chocando-se entre as pernas, os passos ecoando agora
estrepitosamente sobre as tábuas que rangiam, a voz
arrastada e possante a repetir, as vezes muito perto,
assustadoramente perto:

- Para, aluno! Parem os dois! Ou param ou vão sofrer as
consequências!

Jamais pude entender como conseguimos despista-lo. Claudino
me contava depois que havia se embrenhado pelas arvores alem
do H8 e que havia permanecido um bom tempo escondido por Lá.
Eu havia seguido o mesmo rumo, enfiando-me subitamente por
uma escada e em seguida por uma porta aberta de um
apartamento no andar superior. Enquanto sentia decrescer a
intensidade das batidas do coração ainda pude ouvir de onde
estava, por mais de meia hora, as passadas impacientes do
perseguidor , as portas que se abriam e fechavam com
estrondo, uma praga e uma advertência jogada ao vento.

-Não tem nada, não tem nada. Voces me pagam.

Quando sai de trás do aquecedor e pulei para o chão , dois
metros abaixo de onde estava, sentia minhas costas doer, as
pernas dormentes e um medo intenso, como se uma sombra fosse
me cortar o caminho a qualquer momento. Reunindo toda a
coragem que ainda me restava saltei pela janela ao parapeito
inferior e dali corri para o muro que circundava o H8,
pulando por cima dele em um único e desesperado impulso e
correndo por entre as ruelas de paralelepípedos por um bom
tempo, ate perder a escola de vista. Depois, mais calmo,
tomei o rumo do centro da cidade. Calculei que meu amigo
iria me procurar na rodoviária e não me enganei; Claudino já
me esperava. Logo estávamos sentados em uma mesa de um dos
imundos botequins da estação, tomando a cerveja mais gelada
do mundo, e rindo, rindo como jamais haviamos feito na vida.

Duas horas mais tarde desciamos a serra da Mantiqueira
instalados confortavelmente na boleia de um caminhão,
suportando alegremente o rude repertório do aparelho de toca
fitas e respondendo pacientemente as perguntas curiosas do
motorista sobre o "quartel" onde serviamos; Era um gaúcho
franzino, de tez acinzentada e olhos astutos, conversador e
simpático. E assim viajamos, contando e ouvindo historias,
algumas muito interessantes, todas verídicas, acontecidas
havia muitos anos, nas planícies infinitas dos pampas.

Ramalho


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