TURMA DE 72- Memórias de BQ


Minelli e a Loura

Uma das fases mais tranquilas da minha vida na Epcar foi a
do início do ano de 1974, quando voltamos para a escola na
condição de veteranos. O conforto do H8 fazia diferença, as
conversas noturnas no Ap, uma mudança sutil em meu
temperamento, menos ansioso agora. A bem da verdade
estávamos todos mais tranquilos. A tensão resultante da
presença de uma turma mais antiga já não existia, éramos os
donos da escola, finalmente. A única coisa que me preocupou,
naqueles primeiros dias, foi a escalação do pessoal do
apartamento. Éramos oito colegas de personalidades bastante
diferentes. O time do 219 era formado por vários "sem-teto",
pois na época própria de escolher os companheiros de quarto
não nos havíamos manifestado. Assim, restava a todos aceitar
aquele arranjo aleatório e tentar nos entrosar do melhor
modo uns com os outros. De fato, sem a impessoalidade de um
sorteio não teria sido possível reunir Cambahuva e Minelli
em um mesmo ambiente. O Ap 219 apresentava uma composição
bastante disparatada. Ramalho, Almiro, Claudino e André,
Prata, Magnavita, Minelli e Cambahuva. Com a partida de
Magnavita, no final do semestre, sua vaga foi ocupada pelo
Henrique, que vinha de um desentendimento com os
companheiros do seu antigo apartamento. Logo formei com ele
a dupla "Major Aíldon e os alunos no cinema", aos moldes da
que ele fazia com o Augusto Macete, em "O Brigadeiro e o
Coronel". Lembro-me do saudoso e ingênuo Abud, nosso vizinho
do 220, rindo a mais não poder com a patuscada.

Mas, voltando aqueles primeiros dias, devo dizer que não
foram muito difíceis. Vi logo o astral do Ap se revelando em
harmonia, o que tranquilizava a todos. Minelli dominava o
ambiente com suas loucuras, que contrastavam com a
ranzinzice do "bufão" Cambahuva. Prata revelava-se um ótimo
companheiro e era o mais cordial de todos. A noite tínhamos
um papo bastante animado, entremeado de absurdos e piadas. A
conversa invariavelmente terminava na sessão "histórinhas do
titio Jaquinha" - Jacaré Claudino com a palavra, com sua
grossura proverbial e a coragem de narrar historias
cabeludas, que ninguém sabia onde ele arranjava. Íamos
levando a vida e nos adaptando. Com o passar dos dias uma
nova presença veio tomar parte da nossa rotina. Era o caso
daquela tremenda loura, lembra-se algum de vocês? Uma que
morava em frente ao H8, em um daqueles sobrados da rua
paralela ao muro que limitava a escola por aquele lado. Era
a loura do Ramirez, o gaúcho que atravessou um dia o muro e
foi pedir sua mão, e que foi bem sucedido em sua ousadia. A
loura já era um sucesso quando Ramirez teve a idéia de
conquistá-la. Depois teve um trabalho danado para apaziguar
a rapaziada, todo mundo já mal acostumado.

O fato é que, até o triste dia em que o gaúcho resolveu se
apossar do gado a loura tinha sido a felicidade das nossas
manhãs. Não somente das manhãs do apartamento 219, mas das
manhas de vários outros aps nas proximidades, que já haviam
localizado a estrela na constelação.

Lembro-me que sempre tive dificuldades em despertar com os
acordes da alvorada, porque tinha um sono realmente pesado.
Mas, por essa época, os sons do trompete do cabo Duarte
vinham sendo reforçados com os gritos de "Loura! Loura!",
vindos de varias janelas ao mesmo tempo. E a gente acordava
mais feliz, é claro, mais bem disposto, com aquela presença
feminina e sensual do outro lado do muro, a fingir
indiferença, estendendo roupas no varal, pontual e
impertubável. Almiro andou pensando em escrever poesias, não
teve tempo de enviá-las, Ramirez chegou antes. Jacaré
reservou-lhe o seu melhor elogio, com a delicadeza que o
caracterizava, em tom de profundo desespero lírico:

-Ela tem uma bunda!!!

Enfim, a loura ia se tornando a nossa musa matinal, e já
havia alcançado tal celebridade que havia gente que se
quedava em depressão quando não a avistava de manhã. Era
realmente a Estrela D'Alva, até o dia em que circulou o
boato, um banho de água fria: Ramirez estava namorando a
moça e pedia o respeito de todos. Sem entrar em
considerações sobre o tamanho do Ramirez, o fato é que todo
mundo brecou a paquera imediatamente, pois a notícia logo se
espalhou. E as gritarias cessaram subitamente, ninguém
ousava dizer mais nada. O corneteiro assumia novamente sua
condição de ator principal das alvoradas. A loura continuava
lá, como sempre, mas tudo agora era silêncio. Mesmo porque
vez por outra surgia ao lado dela a figura nada harmônica do
gaúcho Ramirez, em romântica incursão matutina. Enfim,
direito é direito, acabou-se a brincadeira. E os dias
voltaram a normalidade, árduos e tediosos.

Mas era terceiro ano, tudo bem mais leve, a gente foi
pensando em outras coisas e acabou se acostumando.

Alguns dias depois tivemos o retorno do Minelli, após algum
tempo baixado na enfermaria, o que significava a volta
definitiva a rotina, com todo mundo brigando numa boa, em
grande e conflituosa fraternidade.

Minelli tinha o dom da alegria, e sua presença, quizessemos
ou não, alterava o ambiente. É claro que o Ap ficava mais
bobo com ele, mas Minelli, justiça seja feita, tinha seus
momentos de grandeza, pois até conseguia ficar calado às
vezes.

Enfim, voltou, guardou suas roupas no armário e
imediatamente se reintegrou a rotina. Quer dizer, à sua
rotina particular, é claro. Contou algumas piadas infames
que inventou na enfermaria, arranjou um apelido para o
Magnavita, sua vítima predileta, executou belíssimos solos
de escaleta, depois do que resolveu dormir, virando o abajur
aceso para o lado do ranzinza Cambahuva.

Manhã do dia seguinte. Frio, neblina. Resmungos, mau humor,
chinelos perdidos. Um já começa a escovar os dentes, o outro
procura a camisa no armário, os chuveiros começam a chiar de
todos os lados. Como fazia frio em Barbacena, principalmente
depois de uma noite de sono! Os vultos caminham
desordenadamente, apressados, já se ouve a porta bater para
o primeiro que segue para o rancho. A rotina imutável das
manhãs na escola, a meia luz, o sono, a vontade de tomar
café. Era uma alvorada como outra qualquer. Lembro-me de ter
sido um dos primeiros a me trocar naquele dia, pois já me
preparava para sair quando escutei alguma coisa. Era o
vozeirão do Minelli do outro lado do apartamento, a ribombar
como um trovão:

- LOURA! LOURA!!!

Aquele clamor isolado, atemporal e volumoso, caiu sobre o H8
como um "Pearl Harbor" sonoro, assustador e inesperado.

- GOSTOSA!!! LOURA!!!

Corri para a janela da sala e vi Minelli, este na janela do
quarto, com as mãos em concha e metade do corpo para fora:

- LOURA! VOLTEI! AQUI!!! GOSTOSA!!!

Não sei porque, ninguém conseguia se mover para ir lá avisar
ao coitado. Almiro estava paralisado ao meu lado,
completamente sem ação. Houve gente que suspendeu a
escovação dos dentes pela metade e ficou ali parado, com a
espuma da pasta a escorrer pelo queixo, sem acreditar no que
ouvia. Alguém sussurrou, alarmado: "será que Minelli não
sabe do Ramirez... Ninguém avisou a ele?..."

- POSSO IR AÍ??? POSSO IR AI? GOSTOSA!!!

Era o prenúncio de uma crise internacional. O berreiro
prosseguia a todo volume, ecoando pelo pavilhão afora, e
houve quem pensasse em empurrar o Minelli janela abaixo,
todos preocupados com o óbvio desfecho Ramiresco...

-MINELLI! MEU NOME É MINELLI!! POSSO IR AI, CORAÇÃO???

Tínhamos que tomar alguma providência. Aquilo iria terminar
em briga, confusão... Alguém tinha que avisar a ele. Alguém
tinha que deter o galanteador Minelli imediatamente e...bem.
Não dá mais tempo, infelizmente. O diretor acaba de
autorizar a entrada do marido em cena. E este já passa por
nós e vai bufando em direção ao quarto, como um raio
descontrolado, em busca do distraído Romeu. Este persiste em
sua romântica súplica, de exagerado volume:

- LOURA, VOCE É UM PECADO! UM PECADO!!! SONHEI COM VOCÊ ESTA
NOITE! SONHEI! ENTENDEU? SONHO! ASSIM, DORMIR... SONHO!
ISSO!!! N.... O QUE? NÃO ENTENDI! MEUS OLHOS? EU? OLHAR?
PARA TRAS? OLHAR PARA TRAS, É ISSO???

Ramirez, Minelli, é isso o que ela esta mostrando. Ramirez,
com cara de tempestade, bem atrás de você...

Ramalho


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