TURMA DE 72 - Espaço Literário


A locação.

Outubro/96.

-É o senhor que aluga criança? perguntou apressada a senhora
gorda e suada, parada à minha frente e, antes que eu
respondesse, continuou definitiva:
-Quanto custa esta?
Atônito, quase entreguei a menininha aos seus roliços braços
estendidos.
-O quê!?
- A criança, quanto o senhor cobra? respondeu ela
impaciente, olhando no minúsculo relógio de pulso.
- Que criança? respondi ainda mais surpreso.
- Ora! Essa aí, no seu colo! Ou o senhor tem mais? perguntou
olhando em volta.
-Alugar a criança pra que? Levantei-me já enfezado,
apertando ainda mais a nenenzinha que eu segurava, fazendo
um favor a uma amiga, jovem mãe e ainda inexperiente na arte
de cuidar da vida e dos filhos ao mesmo tempo.
- Para a fila do banco, para que mais seria?
Olhando para onde sua gorda mão, apontava, me dei conta que
estava sentado em frente ao Itaú. Estava ali porque tinha
sombra, um bom lugar para sentar e era o ponto de encontro
com a minha amiga.
-Precisa de criança para entrar na fila? perguntei
espantado.
-Claro que não! É justamente para furar a fila, passar na
frente dos outros...olha, se o senhor não quer alugar, fala
logo que eu estou morrendo de pressa!
Ruminando as informações que acabara de ouvir, demorei a
responder e nesse ínterim, a gorda foi tirando da bolsa, as
contas a pagar e puxando da carteira recheada de papéis,
sacou uma nota de 10 reais que estendeu para mim com
naturalidade.
Vendo o dinheiro apontado para mim como uma arma,
instintivamente protegi a minha carga, assustado com tal
atitude.
-Mas minha senhora, comecei respeitoso, quem lhe disse que
eu alugo crianças?
-Ué, e não aluga? Então, o que está fazendo aí sentado?
-O que eu estou fazendo não é da sua conta! respondi
ríspido. Vá embora, minha senhora...por favor, nos deixe em
paz!
-O quê! Fez ela num voltear de olhos, 10 reais é pouco? A
minha colega falou que outro dia alugou a criança do senhor
por 10... e eu não vou pagar mais que isso!
-A senhora é louca? Bebeu? É alguma brincadeira? respondi
bestificado.
-Mas que absurdo! resmungou ela enquanto remexia no
porta-moedas, -
Olha, dou mais 2 e 30, 40...50! R$ 12,50...é a minha oferta
final. Quer dizer que para cada um é um preço?
-Deve ser alguma brincadeira...pensei alto.
-Olha, moço, eu não sou rica não, só estou com
pressa...vamos logo com isso que o tempo que eu estou
perdendo aqui, já dava para estar chegando no caixa.
-Mas será possível! consegui exclamar cada vez mais abobado.
-O senhor devia era dar desconto pelo tempo que está me
fazendo perder! explodiu ela estendendo o dinheiro e as
moedas num bolinho.
-A senhora deve estar brincando, deve haver algum engano. Eu
não alugo criança e acho bom a senhora sair daqui se não eu
vou perder a minha paciência...
-Mais que isso eu não vou pagar! vociferou ela, brandindo o
dinheiro como uma praga.
-Ora, vá para o diabo que a carregue! E fui prá cima dela,
protegendo a criança e tentando dar intimidá-la.a gorda.
Assustada com a minha reação, ela virou-se com uma agilidade
impressionante para o seu tamanho e correu, sentindo de
raspão, o meu pé na suas avantajadas nádegas.
As pessoas à nossa volta olharam para mim como se eu fosse o
louco. Mas eu nem ligava, tentava acalmar a pequeninha que,
assustada com o bate-boca, berrava como podia.
Enquanto a ninava, relembrava o episódio e tentava me
convencer que aquilo não tinha sido brincadeira.Quem sabe um
espírito de porco de algum programa de TV qualquer, tivesse
inventado essa brincadeira e eu tinha caído feito um
patinho. Claro que me incomodava fazer papel de bobo, mas no
meu íntimo, crescia a sensação de que aquilo tinha sido real
demais para ser uma simples brincadeira.
E minha amiga folgada, mãe-desnaturada daquela encrenquinha
de olhos azuis e de chupeta sôfrega, não voltava.
Cismado com a senhora gorda e numa angústia indizível, não
sabia mais se esperava a mãe esquecida, se ia procurá-la ou
se entrava no banco a procura de explicações.
E num instante lá estava eu, parado no meio daquela
gentarada toda, procurando aquela locatária contumaz de
crianças.
Ajeitei a Fabinha no ombro e fui atravessando aquela muralha
de mau-humor, característica de banco cheio, em dia de pico.
Minha expressão de angústia e raiva deve ter sugerido às
pessoas nas imensas filas, que eu precisava de algum serviço
bancário e, por ser homem, estava atrapalhado com uma
criança faminta no colo.

A solidariedade na desgraça é que torna o povo brasileiro
único e fabuloso.
Não sei de onde saiu o velhinho, só sei que ele trouxe uma
funcionária do banco até a mim, dizendo gentilmente:
-Mocinha, é esse aqui, apontava para mim com eloquência de
benfeitor,
-Passa ele na frente que o homem está todo enrolado com a
criança.
A Fabinha até que era muito boazinha, mas com aquele calor e
tumulto, cuspiu a chupeta e gritou com força.
Tentava distraí-la falando com aquela voz de idiota que a
gente usa para falar com bebês e cachorrinhos, enquanto o
velhinho explicava a quem quisesse ouvir, os detalhes da
minha situação. Eu olhava, sorrindo amarelo, procurando
descobrir de onde ele tirava tantos detalhes.
- Vai ver a criança tá molhada e o coitado nem percebeu,
falou alguém na multidão.
Diante daquele circo armado e do berreiro da pequena,
desisti de procurar respostas e me dirigia com dificuldade à
saída, quando a funcionária do banco, chamada pelo velhinho
fofoqueiro, me segurou firme, a fim de me conduzir aos
caixas.
Devido ao choro da Fabinha e da super lotação do recinto,
não conseguia explicar o engano à cansada moça, que teimava
em me levar para o caixa.
Estava nesse cabo-de-guerra ridículo quando minha amiga, a
mãe-bendita, chegou.
Agindo rapidamente, ela ajeitou a neném e dando-lhe um
chazinho, resolveu o problema do choro.
Me desvencilhei da moça do Itaú e fui tangendo mãe e filha
para a saída, e estávamos quase conseguindo, quando minha
amiga, a mãe-distraída, me informou que, já que estava ali,
ia aproveitar para pagar umas contas.
A essa altura, eu já havia esquecido o incidente com a
mulher gorda e dei graças por poder me escapar dali.
Me despedi rapidamente das duas e segui para a saída, agora
definitivamente.
Quando cheguei na porta salvadora, ouvi uma voz familiar
gritando acima do borburinho:

-Prá ela o senhor alugou, né! Mercenário!!

72/110 Tafuri


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