TURMA DE 72 - Espaço Literário


Pão com manteiga

Fam. Oso Kein-1996-(R.Tafuri)

Tem dias que a gente sai de casa com a sensação de não
devia ter saido da cama.Aquele foi um daqueles dias. Acordei
estremunhado, mau humor de sono atrasado, corpo cansado,
pedindo um pouco mais de repouso, alimentação correta e
atividades um tanto menos extenuantes.
Mas tudo isso era conversa de naturalista, de médico
prevendo stress para paciente, Na verdade, a vida não é
regida pela minha simples vontade. Entre o `` eu quero'' e o
``eu posso'', existe um abismo enorme, cheio de trabalhos,
responsabilidades, cobranças, sobrevivência e,
principalmente, contas a pagar.
Por causa disso tudo, lá estava eu, na padaria da esquina,
tomando aquele café horroroso, com cor de café e gosto de
cereal. O pão com manteiga jogava de um lado para outro da
boca, esperando a onda de café, tomado em pequenos goles,
para arrastá-lo garganta abaixo.
Estava ali, naquela manhã fria por causa do “maldito”, como
dizia um amigo meu. O “maldito “ senso de responsabilidade
que me impedia sequer pensar em desmarcar um compromisso
assumido.
Era muito cedo, a padaria tinha um movimento quase que
exclusivamente masculino. Pingado com pão na chapa era o
pedido mais comum, seguido de doses de pinga pura para os
mais corajosos.
Meu estado “sonambulóide” daquela manhã nada tinha a ver com
a antipatia que eu nutria pelo dono da padaria que, só
aumentou de grau e gênero com o incidente aparentemente
corriqueiro, para ele, é claro.
Debaixo da garoa fina, vinha um velhinho simpático, bem
agasalhado, com um boné daqueles que parece as orelhas do
Pluto. Parou na porta da padaria e começou a bater os pés no
chão, como se os limpasse para entrar. As batidas
compassadas chamaram a atenção de todos e o dono da padaria
logo gritou para o velho:
- Está com frio, velho punheteiro?
O velhinho, sem jeito, fechando o guarda-chuva, respondeu:
- É para esquentar os pés...
E o dono, lá do caixa, respondeu de imediato, como se
estivesse ensaiado:
- Se masturba que esquenta, velho safado! enquanto fazia o
gesto característico de masturbação masculina.

Eu, que já não gostava do sujeito, fiquei ultrajado pelo
velhinho, furioso mesmo com a falta de respeito demonstrada
pelo grosso proprietário.
Virei-lhe as costas e tratei de engolir o resto do meu café
com pão e manteiga, para sair rapidamente daquele lugar e
quem sabe, se ainda alcançasse o velhinho, me fazer
solidário à sua humilhação.
Tem pessoas que nos são desagradáveis e não percebem,
fazendo questão de continuar sendo, justamente com quem
menos as aprova. Era o caso do dono da padaria que depois de
execrar o pobre velho, veio rindo me contar uma história:
- Esse velho é um safado, não tem jeito. Sabe o que ele fez?
disse com ar confidente, como se amigos fôssemos.
- Não, respondi, contendo a vontade de mandá-lo para algum
lugar.
-Todo dia, continuou ele, esse velho pedia para telefonar a
um vizinho nosso aqui da rua, que também tem um
comércio...Lógico que ninguém ia negar um favor a esse velho
com cara de santo!. Só que começou a aparecer na conta
telefônica da loja, chamadas para os disque-sexo, sabe?
Aquelas sacanagens por telefone.
Involuntariamente, desfranzi o cenho, me interessando pela
história do homem desagradável que, depois de checar se
havia alguma mulher no recinto, falou ainda mais alto, para
todos ouvirem. - Sei, e daí? perguntei, virando-me
interessado.
- Pois então, continuou entusiasmado, o vizinho passou a
ficar de olho em todo mundo que usava o seu telefone e só
desconfiou do velho, quando notou que o velho ficava se
chacoalhando todo enquanto estava ao telefone. Pensando
estar o velhinho passava mal, o dono da loja deu a volta, se
colocando frente a frente com ele... e, foi aí que o pegou
falando sacanagens, palavrões pesadíssimos ao telefone e, se
masturbando enquanto falava!
-Já imaginou? Dentro da loja do sujeito, um comércio de
móveis... um velho nessa idade... com essa aparência
inocente... falando bobagem e batendo uma... disse ele
expansivo, levando-me imaginar a dantesca cena descrita.
Não pude resistir e um palavrão de admiração escapou de
minha boca.
Quando fui pagar a conta no caixa, já olhava o dono da
padaria com outros olhos, não digo com olhos de aprovação,
mas ficou travado entre nós um tipo de cumplicidade
compreensiva.
Saí para meu compromisso e, na minha caminhada até o
estacionamento, cruzei com o velhinho, voltando da outra
padaria, com sua sacolinha de pão e leite debaixo do braço e
aquele ar de vovozinho inocente estampado no rosto.

Antes que eu pudesse conter minha língua, cumprimentei-o com
um sorriso maldoso e um soltei um cordial:
- Bom dia, velho punheteiro...

72/110 Tafuri


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