TURMA DE 72 - Espaço Literário


No Escurinho do Cinema

Roberto Ramalho - 72/131

Amigos, desde menino, quando vendia limões na feira do
Alecrim, em Natal, este cronista já sonhava com a carreira
cinematográfica. De fato levei muita carreira do porteiro do
cinema Rex por tentar entrar sem pagar. Mais tarde, já
adolescente e morando no Rio de Janeiro, fiz bastante
sucesso no cinema da Escola da Aeronáutica, no Campo dos
Afonsos. Mas a história desse sucesso, conquistado com muito
suor e esforço, deve ser contada com detalhes.

O caso é que havia uma rivalidade entre a turminha da Vila
dos Afonsos em Marechal Hermes e o pessoal da Vila Sulacap:
(esta última para quem não conhece, é outra vila militar
vizinha daquela, subindo em direção ao bairro Mallet). Uma
das disputas que se travavam se dava em torno de qual dos
contendores conseguia falar mais besteiras durante as seções
de cinema. Mas não eram tolices não, eram sim asneiras
científicamente calculadas, de modo que o cinema em peso
caisse na risada. Fiquei muito bom naquela coisa de chamar o
artista (psiu!) e ele imediatamente se voltar. É claro que
precisava assistir o mesmo filme varias vezes para adquirir
o timing certo. Ganhei merecida fama, mas nunca esperei
pelos cumprimentos da simpática platéia, porque
invariavelmente aparecia um coronel para me retirar do
cinema. Certa ocasião fui expulso juntamente com meu maior
rival, Juninho Cerol, da vila inimiga. Quando nos vimos do
lado de fora, lado a lado na rua da amargura, uma chuva dos
diabos, resolvemos confraternizar saindo na porrada.

Minhas performances eram friamente calculadas e ensaiadas,
pois nunca apreciei o amadorismo, seja no que for. Certa
ocasião, no entanto, apelei para o improviso, pois a ocasião
pedia intervenção rápida. O fato é que o galã do filme
acabava de ser abandonado por Jane Fonda, que saiu batendo a
porta, dizendo never more, never! e o rapaz ficou ali
perdido, sozinho e abandonado na sala de sua imponente
mansão. A câmera aproximou-se lentamente, para captar sua
expressão de sofrimento, enquanto suas mãos trêmulas
procuravam desajeitadamente um cigarro. Duas lágrimas
despontaram-lhe no rosto patético. Então o galã apontou os
olhos para o teto e a música foi desaparecendo, até que só
restava o imenso rosto do infeliz, perdido em sua
perplexidade, como se perguntasse: que foi que eu fiz? What
did I do? Que cena! A platéia naquele silencio comovido e eu
mais ainda, apreciador sensível que sempre fui, da arte
dramática. E de tão comovido não me contive, soltando um
monumental arroto, que se não abalou a estrutura do prédio
abalou a estrutura do filme.

Juninho Cerol, porém, não era adversário que se deixasse
abater, e a cada sucesso meu replicava com outro de igual
repercussão. Duas semanas depois quase fez o prédio vir
abaixo quando replicou em cima da hora, em impressionante
demonstração de ritmo cênico. Era um musical daqueles bem
coloridinhos, com uns gringos sapateando e cantando aquelas
coisas cheias de holly, darling, dreams come true, etc. No
fim do número, Doris Day já fora de cena, o gringo ficou só
com seu terno de listras, rodopiou mais umas dez vezes e
logo dava aquele falso finale em seu número, quedando-se
subitamente imóvel, com o braço esquerdo esticado para trás
e o outro em direção a câmera, apontando o dedo para a
platéia e sapateando baixinho, enquanto a orquestra fazia a
paradinha de praxe. Ficou apenas o matraquear dos sapatos na
madeira, potoc, potoc, potoc; Foi quando se ouviu aquela
coisa rouca, uma frase em forma de zumbido, em perfeito
sincronismo com a performance dos saltos de metal: -

- Você tem... cinco segundos pra responder... Adivinha o
que brilha mais, a calcinha da mamãe, a cueca do papai...

E o pior é que lá na tela o americano correspondeu, abrindo
os braços e um enorme sorriso, enquanto a orquestra
retornava a todo vapor, em um happy end monumental:
pararapra tchaaaaam!!!

Juninho Cerol teve sua entrada proibida por dois meses. Tal
castigo, porém, longe de representar uma derrota,
significava a consagração para o meu rival. Andei
meditabundo por vários dias, imaginando um plano de
vingança, ainda mais que minha namorada Ana Luiza passou a
se derreter toda pro lado dele. Fiz relativo sucesso logo em
seguida, no meio de um drama francês, quando Jeanne Moreau
subitamente levou um lenço ao nariz e começou a chorar,
balançando a cabeça, enquanto Maurice Ronet tentava
abraçá-la a todo custo. A piada saiu mecânicamente, mais
como obrigação profissional do que pelo prazer de intervir:

- Risca um fósforo, risca um fósforo.

O pessoal caiu na gargalhada, fui expulso, o coronel
ameaçou falar com meu pai, etc. Mas aquilo já não conseguia
me fazer feliz. Que adiantavam tais vitorias efêmeras se o
inimigo não estava presente para amargar meus sucessos?
Resolvi dar uma pausa então, para meditar e aprimorar a
técnica, no que fui auxiliado por vários e bons amigos, que
nos dias de falta chegavam a fazer coleta para conseguir-me
aliviar-me um pouco da dureza. E para um fâ de cinema a
falta de dinheiro é uma tortura sentimental.

É verdade que no cinema da base a gente não precisava
pagar, mas urgia fazer um curso no exterior, e aí se fazia
necessário uma bolsa de estudos. O Campo dos Afonsos torcia
por mim e eu não podia decepciona-lo. Então sai em busca de
novos horizontes. De posse de um generoso fundo conseguido
com o produto de uma rifa, mais de um mês andei frequentando
o Cine Piedade e alguns pulgueiros do centro, em busca de
novos conhecimentos. Na Piedade conheci alguns artistas de
renome, alguns bastante bons, outros medíocres.
Surpreendi-me rindo, coisa rara, na comovente pornochanchada
"As Transas do Barão", quando um sujeito de cabelos
desbotados arremedou do fundo da platéia a voz da heroína do
filme, uma balzaquiana peladona e cheia de celulite, que
exclamou a seguinte asneira enquanto fazia cafuné na cabeça
do gala:

- Cárilossss, (devia ser Carlos, mas a dona falava assim
mesmo, Cárilossss, com acento e tudo) - você não presta
messsmo!

E o gaiato em cima da bucha:

- Cárilosssss, você não presta messsmo!

Ótima performance, tive que reconhecer. A platéia
correspondeu elegantemente, com risadas, palavrões, chuvas
de amendoins e tudo mais. Senti uma leve pontada de inveja,
mas sai do cinema consciente de ter assimilado uma técnica
nova. No Odeon, um respeitável celeiro de profissionais,
aprendi como esculhambar filmes de terror. Certa ocasião
paguei para ver "O Nascimento de uma Maldição". Tinha um
vampiro zarolho, coitado, que não podia entrar em cena e era
saudado com uma tremenda vaia. Era uma coisa muito comovente
e inovadora. Naqueles dias percebi que tinha muito o que
aprender. Em outra ocasião sai indignado do Veneza, na Rua
das Marrecas, quando a turma começou a fazer psss, pssss,
para o condor da Paramount. Amadorismo puro, resmunguei
irritado; uma coisa surrada, superada, indigna de ser
chamada de arte. Nunca mais voltei ali.

Aventurei-me igualmente pelo teatro, poucas vezes, é
verdade, mas sem recolher grandes frutos. Uma tarde paguei
para assistir "Vai de Manso e Afoga o Ganso" no
café-concerto Rival. O caso é que a peça era boa, mas a
companhia muito pobre, com atores famintos e atrizes
magricelas. Lá pelo meio do drama, quando um lobo mau
canastrão dizia indecências para uma chapeuzinho vermelho
até gostosinha, a galera do balcão começou a ficar inquieta.
Quando a fera enfim conseguiu agarrar a moça alguém gritou
lá do fundo:

- Agora enfia o dedo no cú dela.

O lobo mau desceu do palco e entrou em luta corporal com o
engraçadinho, o pano caiu (literalmente, porque despencou em
cima de dois japoneses que biritavam em uma mesa próxima) e
o tempo fechou. Sai do teatro com algumas escoriações,
frutos de uma rasteira que sobrou pra mim, mas muito
impressionado com os colegas da ribalta. Mas o palco não era
minha especialidade, e logo voltava às lides
cinematográficas.

Conclui a pós-graduação algumas semanas depois, infiltrado
na platéia do Madureira 2, em plena estréia do "Diamante Cor
de Rosa". Erasmo Carlos em grande atuação, Wanderléia muito
desinibida, um roteiro ate bem feitinho. La pelas tantas
Roberto Carlos contesta uma coisa que lhe diz a Wandeca,
abana os braços e volta-lhe as costas, deixando-a pra trás,
muito amuada. Foi o bastante para um clone do rei soltar um
tremendo e fanhoso berro:

- Vooooceee!!!! Não serve pra miiiiimmmmm!!!!!


Mas o tempo passava. Na vila as noticias corriam
desencontradas. Juninho Cerol tinha sido visto na sessão da
quarta feira, muito quieto e comportado. Por outro lado
alguém me sussurrava que Ana comentava em alto e bom som que
sentia saudades minhas. Consultei alguns agentes infiltrados
na Sulacap, apurei que a verdade coincidia com os boatos.
Preparei-me para a grande volta. No domingo seguinte
consegui salvo conduto, sob promessa de ficar calado, e
entrei no cinema. Tive a impressão de que vários olhares
voltavam-se em minha direção, mas como sempre lutei pela
privacidade não dei bola para a tietagem e procurei um lugar
discreto para sentar. Com os olhos treinados em longos anos
de profissionalismo, esperei as luzes se apagarem para
tentar localizar Juninho no escuro. Não vi sombra dele. Na
tela as primeiras imagens do Canal Cem mostravam um João
Saldanha irritado, respondendo rispidamente às perguntas de
um repórter folgado. Ao fundo Rivelino e Tostão trocavam
passes, enquanto as demais feras corriam em volta do campo.
A seguir vieram flashes mundanos da cidade, um desastre de
trem, uma inundação rotineira. Depois alguns traillers, ate
que por fim apareceu a manjada figura do leão da metro.
Nesse momento lembrei-me de não ter consultado a
programação. Não tinha a menor idéia do nome do filme que
iria assistir. Sentia-me seguro, é verdade, ainda mais
depois do curso, mas nunca gostei de negligenciar minhas
obrigações, muito menos de subestimar meus adversários.
Aquilo era um deslize que não poderia se repetir, pensei
comigo. Logo relaxei, porém, ao ver a introdução e os
letreiros. Era um faroeste, com direito a um cavaleiro
melancólico e uma irritante trilhazinha sonora de gaita ao
fundo. Faroestes não apresentavam grandes dificuldades. E
logo, surpresa! Eu já conhecia o filme! Foi só apontar o
cavalo na esquina da rua, assim que a tela se iluminou e
pronto. Montgomery Clift. É claro que já tinha visto aquele.
Não perdia um filme daquele cowboy rápido no gatilho! As
primeiras cenas mostravam o herói se aproximando pela rua
deserta, arrastando poeira sob os cascos da montaria,
enquanto os créditos se sucediam na tela. Quando enfim
apareceu o nome do diretor, ele já saltava do cavalo e se
encaminhava para o saloon. Então me empertiguei na poltrona
e concentrei-me no trabalho. Estava inspirado e louco para
entrar em cena, e o filme era recheado de oportunidades. O
que ainda me travava a língua era a incerteza da presença de
Juninho Cerol. Mas alguma coisa me dizia que a patota da
Sulacap estava presente, e Juninho estava com eles. Pois
iriam ver uma coisa. Deixei passar muitas cenas banais, pois
tencionava surpreender meu imenso fã clube naquela noite, e
de quebra aniquilar de uma vez com o farsante. Finalmente
chegou a ocasião esperada. Bill Rogers havia desafiado o
bandidão do lugar para o duelo, devido a um desentendimento
no poker. Agora ele estava ali, paradão no meio da rua,
cercado de olhares temerosos e furtivos, através das janelas
e postigos semi-abertos da cidade. Spencer Carson havia se
retirado para sua fazenda, e voltaria cercado de capangas,
mas Bill não o temia, e agora aguardava impávido e durão a
volta do bandido. Concentrei-me ainda mais, revirei a
memória, apurei os olhos e ouvidos, pronto! Agora! Então
lasquei a pergunta, com a voz mais sonsa do mundo:

- Bill, por favor, que horas são?

Bill Rogers não se fez de rogado. Imediatamente pós a mão
no bolso, retirando de lá um enorme relógio de corrente,
impaciente com a demora do inimigo.

O coronel estava bem atrás de mim e nem esperou o fim das
risadas. Avisou que desta vez meu pai iria ter noticias
minhas e apontou-me o corredor. Sai em estado de graça,
ainda sob o estrépito das gargalhadas. De passagem
cumprimentei o porteiro, que limitou-se a balançar a cabeça
resignadamente. Era uma coisa rotineira para ele. Resolvi
não ir para casa, sem mesmo saber porque. Atravessei a
Intendente Magalhães e sentei-me no meio fio do outro lado.
Sentia-me triste, inexplicavelmente, apesar do sucesso, e
pus-me a meditar, enquanto tentava tragar um continental sem
tossir. Permaneci naquele estado por vários minutos, até que
resolvi tomar o rumo da vila. Mas foi só me levantar e
limpar a poeira da calça para ouvir uma tremenda gargalhada
dentro do cinema. Ora, minha memória era excelente e muito
bem treinada, e eu bem sabia que não havia cenas cômicas
naquele bangue bangue. Logo em seguida a figura
inconfundível de Juninho Cerol aparecia na entrada, seguido
de um mal-humorado porteiro e de um indignado coronel.
Retesei os músculos, preparando-me para a briga. E o sangue
ferveu mais ainda quando avistei por trás do meu rival a
criatura que ainda povoava meus sonhos românticos, ela sim,
minha namorada infiel, Ana Luiza. Mas o que se passou a
seguir me desconcertou por completo. Juninho Cerol me viu,
franziu os cenhos e atravessou a estrada, carregando Aninha
a tiracolo. Quando chegaram perto de mim, ele empurrou
firmemente a moca em minha direção, exclamando para minha
surpresa:

- Tenho que reconhecer que aquela foi de mestre. -sua
expressão era um misto de irritação e resignação. -mas tome
a mina de volta. É um saco. Ela não para de falar em você.

Mas por incrível que pareça daí a minutos conversávamos
amistosamente. E o que é o destino: foi assim que teve
origem uma dupla que se tornaria célebre. Nunca mais tivemos
permissão para entrar no cinema da base, mas logo
excursionávamos por outros bairros, fazendo grande sucesso
nos pulgueiros dos subúrbios. A dupla Bebeto-Juninho fez
tanto sucesso quanto os Xitaozinho e Chororó de hoje.
Naquela noite houve confraternização entre as patotas
rivais. Aninha estava muito gostosa com uma sainha de couro,
e eu ali do lado dela, sentados ambos no meio fio, rodeados
de amigos que ainda comentavam os sucessos da noite. Houve
ainda uma pequena dificuldade na ocasião, mas nada a ver com
briga, pelo contrário. Aninha estava, como já disse,
simplesmente linda. O problema é que o volume que se havia
formado em minhas calças desde que ela havia sentado ao meu
lado teimava em não ceder. Como iria disfarçar na hora de me
despedir da galera? Aninha não fazia nada para remediar a
situação, ao contrario, inocente daquele apuro, encostava-se
mais em mim e sussurrava coisas de menina no meu ouvido.

Bem, ainda vou continuar em dificuldades por uma boa meia
hora. Eu tinha quatorze anos, pessoal! Melhor encerrar o
filme por aqui, com um fade-out lento fechando a cena.
Contra regra, aumente o volume da trilha. Todos sorriem e
apertam as mãos e a tela vai escurecendo.

THE END

Copyright 1998 /Roberto Ramalho

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