TURMA DE 72 - Memórias de BQ


A Cabeça

Festival de Música da EPCar, 1973. Eu estava animado com as
possibilidades da minha "Angélica", que havia conquistado
popularidade antecipada, sendo bastante assobiada nos
banheiros. Tinha esperanças mesmo de conquistar o primeiro
lugar, e não faltava torcida dos amigos para isso. Era a
fase dos ensaios para o festival. O ambiente no cinema era
tão bom que não existia praticamente hierarquia entre os
"artistas" das três séries. A gente acompanhava uns aos
outros, incentivava, aprendia novos acordes, etc. Havia um
bicho de 73, o Jorge da Silva, que ganharia o festival, um
talento para a música, onde andará aquele rapaz? Havia o
Porciuncula, uma figura mais do que excêntrica, e sua
guitarra endiabrada. O Renhe Jr, também de 71, o "Zé
Galinha", o baterista, outra pessoa engraçada, enfim,
naqueles dias que antecederam o festival viramos
simplesmente amigos, todos animados com a perspectiva do
espetáculo que se aproximava. O pessoal de 71, Galluzo,
Renhe Jr, Porciúncula, que havia formado uma "banda", se
ofereceu para me acompanhar no dia, o que aceitei
prontamente. Foram dias de sincera cordialidade, dos quais
não me esqueço até hoje. Foi após um desses ensaios que
aconteceu o episódio que agora conto. Passava das duas horas
da manhã, voltava do cinema bastante cansado, mas feliz. O
alojamento escuro, dirigi-me para o "ap". Eis que encontro o
nosso amigo Giorno, o "Risadinha", meu vizinho de armário,
também se preparando para dormir. Começamos a conversar, o
assunto era música, provavelmente, sei que o papo se tornou
bastante animado. Acho que falávamos um pouco alto, o fato é
que de repente apareceu a ponta de um bibico por trás do
armário. Fizemos pausa na conversa, olhamos um para o outro.
A suspeita veio imediata: algum colega querendo nos
assustar. Observei logo o tamanho do bibico, oculto na
sombra, bastante avantajado. Em tom de brincadeira, comecei
a interrogar o vulto, ou melhor, o bibíco, que continuava no
mesmo lugar, imóvel e assustador. Em voz cavernosa, como nos
filmes de terror, indaguei ao desconhecido:

- De quem é essa cabeeeeça.... que nos olha das
treeevaaaasss?....

- Você não aprendeu, aluno, que é proibido conversar no
alojamento depois do silêncio?

Era a cabeça que respondia, prontamente. Não só a cabeça
como o corpo todo, que finalmente surgia de trás do armário;
ele próprio, a figura inconfundível do Cabeção, Tenente
Fernandes, oficial de dia - Em carne, osso e ranhetice.
Giorno não pôde suportar o impacto da gafe - era demais para
sua sensibilidade - e soltou sua risada nš 315, daquelas
abafadas, que saem entre os lábios fechados. Ainda bem que o
filme era em preto e branco - estava escuro como breu - e
ele não podia ver a côr do meu rosto, pálido, apavorado - do
contrário iria ter uma síncope de hilariedade ali mesmo.
Mesmo assim até hoje não sei o que causou ira tão
desproporcional no Cabeção - pagamos umas duzentas flexões
ali mesmo, no escuro. Nunca consegui entender se a fúria do
tenente se deveu à minha pergunta mais do que inoportuna, ou
se devido à incapacidade do Giorno em parar de rir, mesmo
sob a tortura da suga impiedosa.

Ramalho


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